HÁ pessoas tão boas que entram na nossa vida tão repentinamente, que facilmente pensamos que não são verdadeiras. Quando conheci a Marta, ela pareceu-me exactamente isso, boa demais para ser verdade, como vos disse já por aqui, enquanto justificava a minha injustiça para com ela. Hoje, falo-vos mais um bocadinho da minha Marta.
Como já disse também por aqui e várias vezes, o meu grupo de amigos é recheado de pessoas bonitas, por dentro e por fora. Temos todos muita criatividade a correr nas veias e gostamos de nos juntar, pois sabemos que juntos somos mais fortes. E, todos juntos, fazemos coisas muito bonitas.
A Marta, no entanto, é das pessoas mais “certinhas” que temos no nosso grupo, com um emprego das 9 às 5. Com 30 anos, é advogada, uma daquelas que rapidamente confundimos com uma jurista, pois não vai a tribunal muitas vezes e pratica uma advocacia mais preventiva, para evitar o litígio. Desta forma, desempenha funções em Direito Societário, na constituição de sociedades, na elaboração de contratos, de fusões e de aquisições. E trabalha muito, longas horas, tão empenhada naquilo que faz como naquilo que é.
Há 30 anos atrás, a Marta nascia na Ordem do Terço, mesmo aqui pelo Porto. Viveu a maior parte do seu tempo com os pais em Gaia, apesar de ter passado a sua primária por Lisboa, assim como uma parte do seu estágio e trabalho, já depois do seu curso. As razões que a levaram mais a sul prendiam-se com o facto do seu pai ser oficial do exército e, como necessitava de estar no quartel por questões profissionais, toda a família acabou por se mudar para Lisboa, pois a vantagem vivia enquanto estivessem juntos.
Nessa altura, a Marta ingressou numa escola onde andavam os filhos dos militares, rigorosa na sua cultura oficial. Era muito pequena para fazer o serviço militar, mas, naquela escola, cantavam o hino diariamente e celebravam todas as datas importantes para a temática, enquanto ouviam os trompetes que acordavam esses dias. O seu pai, como parte integrante da administração militar, ligava-se à gestão da alimentação e das roupas daqueles que estavam a seu cargo, entre outros assuntos dessas suas funções. Assim se fundou também a educação da Marta, com esses mesmos costumes, com um regime bélico e preciso. Não podia abrir um pacote de bolachas enquanto o primeiro não acabasse, mesmo que fossem diferentes. Tinha apenas dois pares de calças de ganga, umas para usar enquanto as outras lavavam. Os sapatos que usava, eram gastos até estragar. E o cabelo era curto, por ser mais higiénico e prático.
Por tudo isto, poderíamos pensar que o pai da Marta seria uma pessoa dura, austera e inflexível, mas a verdade é que nunca lhe faltou coisa nenhuma, muito menos a generosidade e a doçura que sabemos fazer parte de si, por meio daquilo que aprendeu em casa. Não é afectuoso, mas é o pai mais presente e preocupado que podia ter. Assim, apesar de regrada e de nunca ser uma boneca enquanto pequena, não deixou de ser feminina e aprendeu a arte de poupar.
Para além disso, a Marta é também a combinação interessante entre um oficial do exército com a sua mãe, uma pessoa com formação em Belas Artes e Pintura: um é geométrico, a outra é artista. E, se é complicado equilibrar as ideias em casa, é também muito importante para conseguir saber ver sempre as duas faces de uma mesma moeda, as opiniões diferentes que ia encontrar pela vida. Assim, naquela casa, a Marta assumiu as parecenças que tem com o seu pai, a sua irmã, abraçou as características da sua mãe. Apesar de serem irmãs muito diferentes, são muito amigas e gostam profundamente uma da outra. A Marta, como a poupada, mais séria (pelo menos na sua profissão), comedida, habitual e sistemática, que apenas gosta de comprar determinadas coisas e que, por isso, sacrifica outras; a sua irmã como a mais emotiva, mais coração. Contudo, nesta família todos aprenderam a viver uns com os outros e, assim, a amizade e o amor incondicional moram aqui.
A sua personalidade combativa e algo refilona, e o facto de gostar muito de filosofia, fizeram com que a Marta decidisse ir estudar Direito, num processo que considera ser bastante natural para si. Na altura, a sua média de secundário era suficiente para estudar na faculdade pública, mas, depois de entrar, resolveu seguir para o curso da Universidade Católica do Porto, que sabia ser uma das melhores a nível nacional. A Católica oferecia o curso também aos 10 melhores alunos e, como foi o caso dela, a sua opção foi partir naquele caminho.
No entanto, no final do primeiro ano pensou em desistir. Estava habituada a ser uma aluna exemplar no secundário e, quando viu as suas notas na faculdade, assustou-se e quis fugir. Pensou em abraçar outra das suas paixões e ir para Turismo para o Estoril, mas depois de perceber que isso não era o que a fazia feliz e passado uns tempos num call center, voltou para o curso que lhe enchia as medidas. Ao contrário daquilo que pensava, o seu curso não potencializou a sua faceta combativa, mas deu-lhe a calma e a tolerância que precisava, e percebeu que é um curso útil que toda a gente devia ter.
Depois de acabar o curso, rumou até Lisboa para fazer o seu estágio na Ordem dos Advogados. Entendeu também que, no trabalho, nunca se agarra demasiado às coisas e, por isso, se não estiver satisfeita onde está, não espera para que as coisas melhorem e está sempre a mudar. Desta forma, esteve em 4 escritórios durante o seu estágio e no 5º e 6º já como advogada. Compreendeu, então, que para trabalhar para alguém tem de admirar profundamente essa pessoa, tem de querer ser como ela em alguma coisa. Não é por ter trabalhado em sítios horríveis, mas só agora é se identificou completamente com aquilo que faz, talvez porque só agora é que descobriu aquilo que gosta verdadeiramente de fazer.
Uma vez em Direito, mexe-se muito com os valores, por isso se não acreditar piamente nos valores da pessoa com quem trabalha, sente-se a combater aquilo que a move. Por isso mesmo, depois de todas estas mudanças e antes de começar a trabalhar no seu escritório habitual, pensou de novo em desistir da sua profissão, porque não se assemelhava àquilo que fazia e não consegue lutar por coisas que não acredita.
“Não somos nós que escolhemos os clientes; são os clientes que nos escolhem a nós.”
Para a Marta, é muito difícil defender um cliente que não tem razão e chegou a ouvir de uma professora que não tinha perfil para ser advogada, mas sim juiz. No entanto, mais recentemente encontrou o lugar onde está actualmente e sente-se muito feliz e realizada profissionalmente.
Para além de tudo o que a define profissionalmente, a Marta tem também muitos valores pessoais, muitos dos quais são relacionados directamente comigo. [e talvez por isso goste tanto dela] Assim como eu, tem uma ligação muito especial com os animais, algo que não consegue explicar e que é intrínseco ao seu ser, algo que nasceu com ela mesma. Para mal dos seus pecados, não consegue lidar com situações de carência ou de sofrimento dos animais e, depois de muito pensar no que poderia fazer, percebeu que a equitação era a sua maneira de estar com animais nos seus tempos livres.
Apesar da sua mãe e irmã terem andado na equitação quando a Marta era pequena, ela tinha muito medo e limitava-se a dar-lhes de comer. Depois de muitos anos, percebeu a doçura que os cavalos lhe transmitem, que o tamanho que tinham era proporcional à delicadeza e a sensibilidade que têm e, assim, apaixonou-se perdidamente por aquela elegância. Hoje, conta que nunca pensou em ser uma excelente amazona [não se diz cavaleira, pessoas], pois teria de ser um bocadinho dura para ensinar os cavalos e ela não queria isso. É a favor daquilo que é natural, tanto para eles como para ela e, quando começa a atingir o exagero, deixa de gostar. E, por isso, quando encontramos um cavalo, ela é a primeira a ir ter com eles, a falar de mansinho e eu posso jurar que lhes vejo um sorriso sempre que olham para ela.
Dos seus valores, a Marta destaca a humildade, a tolerância e a amizade. Não podia ser mais certeira. Aprendeu a tolerância não só pelo seu curso, mas também pela sua educação, por aquilo que ganhou com os pais tão diferentes, mas tão respeitosos e equilibrados. A humildade vive na meiguice da sua voz, no carinho das suas palavras. Admira profundamente também os seus amigos, principalmente porque são radicalmente diferentes dela e fica encantada com a capacidade que têm de criar arte e de viverem disso. Com os seus amigos, descobriu o seu escape gigante, onde se permite ser menos séria, soltar as amarras, rir-se muito, falar de tudo o que gosta e do que a fascina. E não há dúvida nenhuma: é das melhores amigas que alguém pode ter, com uma dedicação sem fim.
Se antes pensava que o seu futuro ia ser programado, hoje a Marta diz que está tudo em aberto. Não sabe se vai ser advogada ou se vai ficar pelo Porto, perto dos seus amigos e da sua família. Diz isto porque não tem objectivo nenhum para o futuro, pois sabe que, se tivesse, lutava por ele até à última das horas. No entanto, refere que não se importava de estar com está agora, feliz, segura, completa. E, por isso mesmo, vai deixar que a vida lhe traga a evolução que merece, o caminho que lhe deve trazer.
Já aqui vos falei da Marta. Não é uma pessoa de sempre e assustou-me quando a conheci, pois era tão doce e tão querida que quase achei que não podia ser verdade. Há pessoas assim, tão boas e bonitas que julgamos serem de mentira. E hoje, que ela lê isto com uma lágrima no canto do olho, tão meiga e agradecida como ela sabe ser, digo-lhe com sinceridade: obrigada Marta, por teres aparecido. Admiro-te muito por seres exactamente como és. E tornaste-me uma pessoa melhor.
Por Raquel Caldevilla publicado in Raquel Caldevilla