KAMIKAZES desafortunados, hipnotizadores no fio da navalha, falcoeiros de olhar aquilino, exumadores e ilusionistas. Maria Ramos Silva percorre este “monstruário” de ofícios e vocações, tratados nos 25 contos de “A Fome do Licantropo e outras histórias” Um homem que julga transformar-se em diversos animais. De gato a lobo, passando por cão, cavalo ou ave, com as devidas tendências para o canibalismo. Um mito e um cenário clínico rodeiam este licantropo esfomeado, o mesmo que dá título ao mais recente livro de contos de Miguel Miranda, terreno de absurdos e perplexidades protagonizados por jardineiros, yetis, zombies, guardas-nocturnos, recoveiros e outros actores na região de penumbra da vida. Chamemos-lhe profissionário, ou 25 histórias ordenadas alfabeticamente, correspondendo a cada prosa uma arte, ofício ou vocação. Medicina e escrita são as duas vias do autor, que venceu o Grande Prémio do Conto 1996 da APE, com “Contos à Moda do Porto”. Seguiram-se outras colectâneas, romances e policiais, como “O Estranho Caso do Cadáver Sorridente”, “A Maldição do Louva-a-Deus”, “Dai-lhes, Senhor, o Eterno Repouso”, “Todas as Cores do Vento” e “A Paixão de K.” Todos com pequenas gralhas, imperfeição perfeita para leitores atentos que passam pelo seu consultório.
Em qual destas profissões alternativas apresentadas no livro se poderia rever?
Como sou escritor, tenho esta vantagem de ter várias vidas. Posso exercer qualquer uma destas no universo ficcional, mas algumas até poderei já ter parcialmente executado, com alguns destes mistérios. De licantropo não tenho muito; mas, literariamente, canibalizamo-nos uns aos outros. Posso imaginar e vivenciar qualquer uma destas profissões. São algumas das mais estranhas, com um mostruário, ou monstruário, de vocações, de almas, que realmente não encontramos tanto.
Com a penumbra em redor e um certo toque de policial?
Nos contos há sempre um desfecho imprevisível e alguns traços de surrealismo. Já me aconteceu muitas vezes. De facto, há determinadas zonas de penumbra das vidas das pessoas que me interessam, profissões e vidas aparentemente normais que encerram em si coisas, às vezes, extraordinárias e estranhas, ou então pessoas estranhas que encerram dentro delas humanidades, coisas normais.
O registo é enxuto, inclui vários apontamentos clínicos. De que forma a profissão de médico contagia a escrita?
A escrita não me contamina de maneira quase nenhuma. Aliás, tenho esse azar de ter uma duplicidade de funções. Ser escritor e médico leva-me a muita contenção, porque passam por mim muitas vidas e, como sou médico em plena actividade, tenho sempre o cuidado de não retratar ninguém na vida real. Isso até é uma limitação. Não considero que a medicina contamine nada. Aliás, quase nunca escrevo sobre temas médicos. Por acaso, aqui há um ou dois contos que têm a ver com saúde, doença, mas porque estamos a falar da vida real e são preocupações normais das vidas das pessoas. Mitos, adivinhos, ilusionismo, bruxaria, o imaginário sobre o culto da morte, o paraíso, o inferno. Não tem a ver com a medicina. É um puro logro. Essa duplicidade só me atrapalha, muitas vezes. Os milhares de pessoas que passam por aqui ficariam um bocadinho zangadas se se pudessem identificar. Como escritor, consigo fazer personagens mais interessantes, voando para além da realidade
Os seus pacientes sabem que escreve?
Sabem, é público. Lêem os livros, uns gostam. Um doente meu já com alguma idade é perito em encontrar gralhas em livros. Ainda não consegui ter um livro puro, sem nenhuma gralha, é um karma. Mas parece que é normal. A revisora vê e revê, e depois abrimos o livro e falta qualquer coisa. Faz parte da magia dos livros, serem obras imperfeitas.
Os pacientes comentam, são leitores empenhados?
Lido com milhares de pessoas e, dentro dessas, algumas dezenas são bons leitores. Tenho uns largos milhares de pacientes. Já tenho clínica há quase 35 anos. Só no centro de saúde, tenho dois mil. Cá fora, já me passaram pelas mãos seguramente mais de cinco mil. Conhecem e vão falando. Tenho tantos pacientes como impacientes.
Começou a publicar em 1992, quando lançou “O Complexo de Sotavento”. Já escrevia antes?
Sempre tive uma vida bastante ocupada profissional e socialmente. Só em criança é que escrevia umas rábulas para teatro, festas de fim de praia e, às vezes, nas urgências também, umas coisas pequenas, sem pretensão. Sempre tive muitos cargos de chefia, direcção, e uma vez, tinha uns 35 anos, chegou uma administração nova e demitiu-me das funções de gestão que tinha. Fui para férias sem problemas, que é uma coisa que nunca me acontecia. Com que ia entreter-me? Achava impossível fazer um romance. Uma história curta inventava na hora com facilidade. Agora, aguentar uma história com dez ou 15 personagens, ao longo de 250 páginas, que tivesse interesse, achava impossível.
Mas escreveu.
Foi a tentação do impossível que me levou a escrever. Comecei aos 35 anos a escrever e a publicar. Não era pessoa de ter coisas na gaveta. Nunca escrevi poesia, nunca rimei duas palavras. Sempre fui de um espírito prosaico. Sentei-me a escrever uma história e saiu o primeiro livro. Meio foi feito nas férias, nos dois meses seguintes compus o resto. O primeiro livro era um bocado fraco; até digo que não existe, está esgotado. A partir daí, os outros já saíram bem.
Depois do primeiro tinha logo a ideia clara de que podia publicar mais?
Não, aliás houve um hiato entre o primeiro e o segundo, quando estive a meditar sobre a evolução. O segundo livro, de contos, já saiu bem, em 1996, recebeu o Grande Prémio do Conto. Os outros, mais conhecidos ou menos, têm o seu interesse. Foi uma evolução normal. Vou variando entre o conto, o romance puro e o romance policial. Quando escrevo um livro, não gosto de escrever um do mesmo género logo a seguir. Se não tiver um tema que me agarre, escrevo contos. Neste livro são escritos com o mesmo horizonte temporal. Isto não é uma colectânea dispersa, de contos guardados aqui e ali. Não, foram escritos objectivamente com esta ideia. Estão escritos ervanários, bestiários, breviários, não estava feito nenhum profissionário. Isto foi organizado assim. Fui seguindo o alfabeto e escrevi os contos ao longo de oito meses.
Há alguma profissão em particular que lamente ter excluído?
Haveria muitas outras, mas estas foram as que me suscitaram logo uma ideia. Algumas letras foram difíceis, como o Y. Mas, se fossem mais, seria um tratado, uma mercadoria maçadora para as pessoas.
Tem um xadrezista. Também jogou xadrez.
Sim, joguei bastante tempo nas primeiras categorias do Futebol Clube do Porto, ganhei torneios internacionais. Andebol também. Mas depois a vida começou a complicar-se e tive de ir deixando algumas coisas.
Onde costuma escrever?
Sou um escritor nómada, escrevo em todo o lado. No meu covil, em casa, quando preciso de fazer pesquisas, mas gosto de escrever em sítios diferentes. Escrevo muito em viagem, os aviões são óptimos. Isto em termos de escrever fisicamente, porque escrevo mais é dentro da cabeça. Costumo dizer que aproveito bem as filas de trânsito para construir as minhas histórias. O xadrez ajudou-me a escolher os meus sonhos, posso sonhar com as histórias e continuo a escrever de noite. Agora, por exemplo, estou a trabalhar num livro e o principal trabalho é mental; depois, é imprimir. Vai-se escrevendo. Gosto de pegar no portátil e ir para a praia escrever. Aliás, dois destes contos foram escritos em plena Feira do Livro, em Lisboa.
Nas horas vagas do consultório também?
Não, não. Faço muita coisa, mas uma de cada vez. Assim como não vejo doentes a meio da escrita. [risos]
Que se segue a este livro?
Neste momento estou a trabalhar num romance, mas já tenho um outro pronto, que está na editora, na fila de publicação. Esse é um policial. O romance é para mais tarde, ainda está no segredo dos deuses.
Por Maria Ramos Silva publicado in ionline