DEPOIS de lhe falar na prisão de Gorki, ocorrida em 1905, o alfarrabista da Académica contou-me um episódio extraordinário. Tornou-se, não sei explicar a razão, mais íntimo, deixei de ser cliente e terei entrado no rol dos amigos, dos confidentes. Havia um bibliófilo, médico conhecido na cidade, que todos os sábados vinha à livraria à procura de obras relacionadas com agricultura, com o trabalhar a terra – sempre que encontrava algo de novo, sem regatear preço, saía feliz e essa felicidade estendia-se até chegar a casa. Porém, quando era o dia da caça, ou seja, quando regressava de mãos vazias, a tristeza atormentava-o, por vezes, a semana toda. Tanto que, um dia, a mulher do bibliófilo veio pedir ajuda ao alfarrabista. “A dado momento, na livraria não havia mais ninguém, disse-me: sou a esposa do médico fulano de tal, e vinha pedir-lhe um grande favor, Se estiver ao meu alcance, disse eu, não será favor nenhum. Então, a senhora contou-me da tristeza do companheiro quando volvia a casa sem livros, e da alegria se juntava mais algumas obras à imensa e cuidada biblioteca. A profunda paixão da mulher pelo bibliófilo espantou-me. Compreendo, disse eu à senhora, a olhar várias vezes a porta, e esteja tranquila, se alguém chegar a sineta avisa-nos. Mas, como lhe ia falar, eu não posso inventar livros para o seu marido e meu amigo. Como calcula, nem tudo o que vem à rede é o peixe pretendido. Os livros do senhor doutor nem sempre aparecem. A bibliografia dessa área é pouco extensa, e o doutor seu marido terá grande parte do que existe. Por vezes, entram várias obras, não raro decorrem meses sem fruir nada de jeito. Como vê, infelizmente, está-me vedado o dom de inventar a alegria. Terá, estou certa, esse dom, disse-me a mulher do bibliófilo. Por isso, apelo à sua cumplicidade. É uma questão de saber repartir, a arte antiga das mulheres, guardar e dar no momento preciso. Se a senhora fizer o obséquio de me explicar esse meu dom, ficar-lhe-ei agradecido. No milagre da multiplicação dos pães há direitos de autor e é irrepetível, creio eu, noutras substâncias. A mulher do bibliófilo sorriu, não por vislumbrar graça nas minhas palavras, não, sorriu da minha ingenuidade, da falta de perspicácia em entender o verbo repartir que abre caminho à alegria. Certas ocasiões, como o senhor disse, dispõe de algumas obras do interesse do meu marido, Sem dúvida, e o doutor lava-as todas. A senhora disse, Aí procuro a sua ajuda, a sua cumplicidade. Se tem, por exemplo, três livros, mostre-lhe só um, guardando os outros para as visitas seguintes. Assim, ele chega feliz a casa, e o senhor não ficará prejudicado. Nem de propósito, um ou dois dias depois dessa conversa, veio aqui um cavalheiro a querer vender o Jornal de Horticultura Prática, de que era proprietário Marques Loureiro, dono do antigo Horto das Virtudes, uma obra rara dos finais do século dezanove, encadernada, vinte e quatro volumes, em ótimo estado. Fizemos negócio, porque eu rapei das notas e nem deixei respirar o vendedor. No sábado seguinte, quando o bibliófilo chegou, à hora habitual, abordei-o: senhor doutor, anda por aqui uma coisa que talvez lhe seja útil, e apresentei-lhe o sexto ou sétimo volume. Ele depois de abrir o livro ficou, como hei de dizer, ficou como um gaio de cereja no bico! E se apareceu este, senhor doutor, os outros volumes andam por perto. É como as perdizes, quando se caça o perdigão, o bando fica disperso, mas acabará por se unir. Como saltou a perdiz da ribalta, quis falar-lhe de Torga, narrar um dos seus episódios cinegéticos – ele não me ouvia.” A felicidade, meu amigo, disse o alfarrabista agora para mim, e a arrematar a história, é um jogo de cumplicidade: as mulheres, repartem o pão e os afetos há milénios, sempre souberam esse arcano.

Por Francisco Duarte Mangas, excerto do livro A Cidade das Livrarias Mortas, Teodolito, abril 2020, páginas 178 a 181

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