NAQUELA luminosa e limpa manhã de Agosto, destes dias tórridos de verão, estava lendo sonetos de Florbela Espanca, na praia dos Beijinhos, na Póvoa do Varzim; quando, atónito, reparei, que era espiado, por alguém, que revirava, dissimuladamente, os olhos, sobre o jornal, que lia.
Era homem entrado em anos. Mal escavacado; magro; olhos frios e tristonhos. Nariz levemente adunco; cabelos ralos e brancos.
Encarei-o: olhos nos olhos; e sorri.
Voltou-se, afável, acercando-se; e em voz branda e velada, disse-me:
– “Já não se lê versos de Florbela! …Nem dela, nem nenhuns… Já não há romantismo… nem gratidão!”
Murmurei, em surdina, um “acha”, interrogativo.
Então, o homem, prosseguiu:
– “Quando era rapazelho, cheguei a decorar versos de Florbela…Depois…emigrei. (Era moço da terra, pobre.) Deixei-me de literatice. Minha senhora, até, costumava dizer: “ Letras, são tretas…”; mas tenho pena… – Desabafou, com pontinha de tristeza, bailando nos olhos inexpressivos.
Sorri; perguntando para onde emigrara, para alimentar conversa:
– “Para França. Empreguei-me, “atão”, como guarda numa fábrica de cerâmica. Ai conheci a “patroa”, que fazia limpezas. Casei…Alugamos modesta casita, nos subúrbios de Paris. Aforramos quanto podíamos. Graças a Deus nunca passei fome. Ajuntei pé-de-meia, e regressei. Com “francês”, da minha criação, montei casa de pasto.”
Depus o livro sobre os joelhos, e picado pela curiosidade, escutei-o atentamente.
– “Minha esposa – continuou, – tem dedo para cozinha. Preparava, que era de ver, os pratos. Eu andava numa roda-viva: “ João!: mais cerveja; João!:café e bagaço; João!: traz-me cigarros; João, para aqui!; João para ali!…” Chegava à noite estouradinho. Até os pés formigavam!…
Leve nuvem de tristeza, anoiteceu-lhe o rosto macerado.
– ”Aposentou-se?” – Atalhei.
– ”Canté! Começou, aqui na Póvoa, a febre da construção. Era um Deus nos acuda. Meti-me no negócio. Coisa pequena… Mas as pernas pesavam-me… Ficaram uns cepos!; e “atão”, a mulher, coitadinha, estava chupadinha de tanto trabalhar…”
– “Reformou-se?” – Interroguei; aguardando a continuação da história, que começara a interessar-me:
– “Sim. Construí mansão, que se vê. Tem quatro quartos, com banheiro, completo. Um para cada filho…Mal sabia eu, que transcorrido meses, partiam cada um para seu lado. Até a princesazinha se foi! …para a terra do marido! Fiquei eu e a velha… Sempre na esperança que nos venham visitar…”
– “Certamente, que sim…” – interrompi, a medo.
-”Canté! Passam meses que nem telefonam! …Andam nas lidas…Dizem que é bom ter filhos. Com filhos ou sem filhos, o destino é sempre o mesmo: ficarmos sós. Trabalhei a vida toda. Para quê?! Diga: para quê?! … A cada passo ouço: Fulano faleceu! … Sicrano – era tão bom rapaz! – lá se foi… Tinha tantos sonhos!…Mas tudo deu nisto, no que vê!… “
Abriu os braços, em gesto de desânimo.
Calou-se de repente, desalentado. E ficou, de olhos vazios, mirando as ondas azuis, lambendo, suavemente, a areia morena da praia. Procurando, quiçá, na imensidão do mar, resposta para a desilusão.
E enquanto escutava o desabafo, recordava, meditando, a parábola do homem rico (Luc12:16,21): “O campo dum homem rico tinha dado abundantes frutos… e disse à sua alma: tens muitos bens em depósito, para largos anos: descansa, come, bebe e regala-te…”
E o Homem de Nazaré, concluiu: “Néscio!: esta noite te virão demandar a tua alma; e as coisas que ajuntaste, para quem será?”
Pergunto, agora: Para quê tantas canseiras? Tantos sofrimentos? Tantos desejos e invejas? Tanta vaidade e orgulho? Tanta ambição desmedida?! Morre o homem, nada leva… Com tão pouco se pode ser feliz!…
Chegava, abafado, com o murmúrio do mar azul, o ciciar confuso de vozes; e sobre tudo, flutuava a voz longínqua e arrastada, do vendedor da praia: “Chora, chora, que a mamã dá! …”
Asas brancas, de brancas gaivotas, executavam graciosos arabescos, sobre a areia, pejada de gente. Depois… num voo ascendente, perderam-se, diluídas na névoa dos céus de A-Ver-o-Mar…
Silêncio… Serenidade convidativa ao repouso e à meditação.
(João, é nome fictício, para não ser fácil identificar o meu interlocutor.)