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O morto

O morto

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O morto deu-lhe para morrer

E ficou assim – morto – desde que morreu

O morto já não quer saber de nós

O morto só pensa nele

Agora nem fingir de morto sabe fazer

Para cúmulo finge que está vivo ao deixar as unhas e a barba crescer

Não fala não ri nem se mexe

Tanta coisa para nos contar e ali mudo e quedo

Agora são os outros a contar-nos as coisas por ele

O morto só sabe estar morto

Não vale a pena insistir porque o morto agora só quer continuar morto e que o deixem em paz

O morto está ali parado à espera de acabar de morrer

Deixemos o morto morrer

PML

O MORTO

O morto, assim barbeado,
assim vestido, calçado,
está pronto a ser enterrado,
está pronto a ser olvidado,

que ele agora é uma coisa,
é de fora para dentro.
Só aos vivos falta o tempo.
A ele não, que é uma coisa.

Não tem lazer, que fazer,
nem aflição ou dívida.
Qualquer destino lhe serve
à maravilha.

E tanto se lhe daria
ser o defunto na sala,
como carcaça na vala
ou objecto de poesia.

Mas não se esquecem os vivos
de condimentar o morto.
Para que dele não fique
mais que o osso?

Alexandre O’Neill in Poesias completas & dispersos [Poemas com endereço], Assírio & Alvim, março 2017, página 194

NOTA DO AUTOR: li o poema de Alexandre O’Neill há muito tempo, quando comprei as Poesias completas. Escrevi o poema do Morto há poucos meses e só agora é que reparo na semelhança do tema e até da ironia. Aparentemente não foi inspirado no poema de O’Neill, mas que a leitura daquele e de outros poemas do autor ajudaram a fermentar o meu poema, não há dúvidas. E eu quero acreditar nisso. Por isso continuo a ler O’Neill.

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