NO ANO 2000 editei um pequeno livro que recolhia textos de humor e sátira (ilustrado com desenhos publicados no Jornal de Notícias) a que dei o nome Cimbalino Curto, e o jornalista Viale Moutinho atribuiu-lhe três estrelas (numa escala de cinco) na recensão crítica que fez no jornal Diário de Notícias. Um dia o telefone tocou no meu ateliê. Do outro lado, alguém me dizia que falava de Lisboa… e eu a registar a força do seu sotaque tripeiro! – Olhe, eu moro em Lisboa e estou farto de procurar o seu livro Cimbalino Curto, mas não o encontro nas livrarias. Fui ao Diário de Notícias para me darem o seu contacto, mas também não sabiam quem você era. Tiveram que telefonar para a delegação do Porto, e só assim pude chegar à fala consigo. Sabe? É que eu sou o inventor do cimbalino!… E disse-o com tanta convicção e entusiasmo que, de imediato, lhe propus um encontro para que me contasse essa sua invenção. Combinamos dia e local, meti-me no comboio, encontramo-nos junto ao elevador da Bica e fomos almoçar bacalhau com grão.
Bom conversador, o meu leitor eventual chamava-se Porfírio. Rumou a Lisboa em 1959 para chefiar a FAEMA, residia em Oeiras, e nasceu no Porto (Freguesia de Santo Ildefonso) em 1928, tendo vivido a meninice e juventude numa “ilha” da rua de S. Victor. Em miúdo esteve, por um triz, para participar, como figurante, no filme de Manoel Oliveira, Aniki Bobó. Só não o fez porque adoeceu e quando se iniciaram as filmagens estava internado nas Goelas de Pau (Hospital Joaquim Urbano). A sua mãe, viúva, não queria vê-lo parado. Por isso, aos sete anos, ajudava-a a carregar canastras de pão para a Calçada de Monchique e, no Verão, ía para a praia da Foz vender copos de água com limão, de um regador forrado com heras. Carregou carvão e farinha, foi marçano, vendeu fruta aos trabalhadores que construíam o Coliseu do Porto, e aos domingos recebia gorjetas de viúvas por limpar jarras e floreiras no cemitério do Prado do Repouso.
Aos 14 anos era aprendiz de serralheiro na Metalúrgica Henrique F. dos Santos, no Largo do Corpo da Guarda. Entre os vários artigos fabricados nessa oficina contavam-se máquinas de café de saco, açucareiros, cafeteiras e leiteiras. Mas também se procedia a consertos e, nesse sentido, às segundas-feiras, o Porfírio dava uma volta pelos cafés da baixa portuense recolhendo as peças com necessidade de arranjo.
Dessas rondas profissionais recordava os cafés Java, Majestic, Águia D’Ouro, Palladium, Brasileira, Tivoli, Atneia, Arcádia, Sport, Central, Victoria, Astória e Brasil, e ainda a Confeitaria Palace, estabelecimento de gabarito, que existia ao fundo da rua 31 de Janeiro, na curva para Sá da Bandeira. No primeiro andar funcionava a redacção do jornal O Século. O Porfírio também arranjava fechaduras, e muitas vezes foi chamado a casas de prostituição onde, inexplicavelmente, as fechaduras avariavam muito!… Nessas andanças acabou por fazer amizade com muitas “mulheres da vida”. Na década de 1950 Salazar proibiu a prostituição complicando a vida a muitas profissionais do sexo, e o Porfírio recorreu às amizades que fez com os proprietários dos cafés da baixa, conseguindo emprego para muitas delas.
Uma das obras metalúrgicas que as suas mãos ajudaram a construir, e que recorda pela sua imponência, é um candeeiro de tecto que pode ser visto no hall do Teatro Rivoli. Um dia o Porfírio mudou de casa e de patrão. Instalou-se na rua de Santa Catarina, no número 630, e arranjou emprego no número 610, na oficina metalúrgica de Manuel Ferraz, pegada à Casa NunÁlvares. Em 1948 veio a “coqueluche” das lâmpadas fluorescentes e o Porfírio especializou-se na nova técnica de iluminação. Também fez holofotes para a Tobis, máquinas de cortar fiambre e de medir azeite, cadeiras de barbeiro e balanças.
Entretanto o serviço militar interrompeu-lhe a profissão numa altura em que a guerra da Coreia obrigou o Estado Português a defender os territórios de Timor e Macau. O Porfírio só não foi mobilizado porque era considerado o amparo de família, por ser órfão de pai. Em 1950 a oficina mudou-se de Santa Catarina para a rua de Noeda (Campanhã), e uma nova especialização estava reservada ao Porfírio.
La Cimbali e o cimbalino
Em 1956 a boa fama profissional da oficina de Manuel Ferraz levou a que fosse escolhida para agente da marca La Cimbali, moderna máquina italiana de tirar cafés. Porfírio foi a Itália fazer uma especialização para poder reparar as novas máquinas, cuja primeira foi montada no Café Central, em Anadia. Seguiu-se a montagem de máquinas nos cafés Águia d’Ouro, Palladium, Âncora dOuro, Tropical, Brasileira e Confeitaria Lobito (Largo do Padrão) no Porto, e nos cafés Sport e Pátria, em Matosinhos. O Porfírio era conhecido em todos os cafés, e o seu passado profissional merecia confiança. Honesto, simpático, alegre e bom conversador, facilmente convenceu todos os industriais do ramo a deixarem montar uma das modernas máquinas nos seus estabelecimentos, à experiência.
Um engenheiro italiano, de nome Campo Nuovo, acompanhava o Porfírio e informava os donos dos cafés que só se procederia à venda da máquina se se comprovasse a eficácia do novo modo de servir café à italiana, se o interesse dos clientes justificasse e se houvesse vontade de aquisição por parte do proprietário do estabelecimento. E foi a que começou o problema. Ninguém pedia café de máquina!… Passavam-se os dias e o café à italiana não tinha clientes. Aquilo parecia um fiasco e o italiano Campo Nuovo começou a desanimar e pensou regressar a Itália com as máquinas. Entendendo esse desânimo, e cheio de boa vontade em ajudar, o Porfírio percebeu a falta de informação que fazia o desconhecimento do produto pelos potenciais consumidores, e sugeriu ao italiano:
– Ó senhor engenheiro, porque é que o senhor não faz um cartaz a dizer assim: “Não peça café. Peça um cimbalino e veja a diferença”. Campo Nuovo arregalou os olhosl De imediato viu que acabara de nascer um nome para o novo produto que era o café da máquina La Cimbali!
Aceitou a ideia, mandou tipografar cartazes com a frase sugerida pelo Porfírio, distribuiu-os pelos cafés… e algum tempo depois já pôde facturar as máquinas instaladas!
Os bons apreciadores de café aderiram ao “cimbalino” que se tornou num êxito e numa marca do Porto, e o Porfírio recebeu um prémio de 5.000 escudos pela ideia!
A balança falante
A Farmácia Estácio, pegada ao Teatro Sá da Bandeira, no Porto, era famosa por ter uma balança que falava! Recordo o momento mágico em que a minha mãe me levou a pesar-me nela. Subi para o prato, o ponteiro movimentou-se no mostrador apontando para o meu peso e, ao mesmo tempo, uma voz metálica saiu da balança, informando: “Vossa Excelência pesa vinte e quatro quilos e duzentos gramas”!… Estávamos na década de 1950 e a técnica de gravação sonora não tinha a sofisticação necessária para explicar o fenómeno! O Porfírio fazia a manutenção da balança falante, e explicou-me o seu funcionamento. A balança, colocada na entrada da farmácia, nunca mudava de lugar. Nem podia!… Estava presa ao chão por parafusos. E na cave, precisamente sob a balança, havia uma mesa sobre a qual se encontrava outro mostrador ligado por um veio ao tecto… ao prato da balança que estava na lojal Essa mesa era o posto de trabalho de uma funcionária que endereçava sobrescritos, empacotava comprimidos e rotulava xaropes, enquanto esperava que um cliente se fosse pesar. Quando tal sucedia, o mostrador da cave apontava o mesmo peso que o cliente comprovava visualmente, enquanto que acendia uma lâmpada vermelha, chamando a atenção da funcionária. Esta, tinha um microfone e um botão para o ligar, e dizia o peso que via no mostrador que tinha à sua frente, e que o cliente ouvia na saída do som por detrás do painel do ponteiro! Às vezes, momentaneamente, a balança “avariava”… mostrava o peso, mas não falava. Isso acontecia quando a funcionária da cave… ia fazer um xi-xi…
Por Onofre Varela publicado in GRANDE PORTO MAGAZINE.
Adorei. Há histórias que é um crime não serem contadas! Não é apenas a história do cimbalino é a história do Sr. Porfirio como tantos anónimos que representam uma geração de crescimento e trabalho que hoje parece irreal, mas era a realidade da época. Obrigada pelo texto escrito.
Se há histórias que acendem a saudade, num fogo brando de ternura que faz sorrir, esta foi uma delas.
Obrigado Porfírio, pelo exemplo de vida; obrigado a quem publicou esta história.
Mais uma história da História da Cidade que amo. Só ao ler o nome dos cafés da Baixa, que alguns frequentei, me trás uma nostalgia tão gostosa que até arrepia. Vou imprimir e guardar. Obrigado a quem publicou este belo texto e especialmente ao Senhor Porfírio…