NOS idos de 1976 um geógrafo francês, Armand Frémont, escreveu um livro, A Região espaço vivido (Paris: Flammarion), inaugurando uma geografia verdadeiramente nova. O conceito de espaço vivido inverteu a situação convencional do olhar do geógrafo em função dos territórios estudados: de objecto de estudo enquanto paisagem com as suas formas, modos de vida, condições biofísicas, actividades, economia…, o espaço passa a ser apreendido como pertencendo a uma relação mais ou menos complexa, duradoura ou instável, entre indivíduos, grupos sociais e âmbitos geográficos que são percorridos, apropriados, percebidos como coisa útil e prática, dotados de sentidos, habitados por memórias, emoções e contradições. Os homens seriam sujeitos activos e não abstracções objectivadas a partir das formas de ocupação/transformação do território.
Pensava nisto quando fotografava de longe esta encosta, impressionado com a luz, as cores, a montanha que se indefinia com a distância, acentuando contrastes, texturas ou o desenho dos campos e prados… – coisas da imaginação romântica que persiste, deambula e se alimenta de mitologias de paraísos perdidos e lugares incertos.
O toque do sino ao longe expandiu a contemplação provocou um comentário de alguém que se aproximava com um rebanho mínimo – Aqui, quando morre alguém, seja na América, seja na Suíça, logo toca o sino para que se saiba. Conhecia essa pessoa?, perguntei. Não, saiu daqui muito nova e eu também, …para Paris; foram mais de quarenta anos de trabalho, fábrica de automóveis, construção, táxi… de Orly ao Marais acho que passei em todo o lado.
Por causa da paisagem sonora ou sineira fiquei então a saber que ninguém daquelas casas vive do que estes campos dão e que, ao contrário, se gasta dinheiro para impedir que o mato invada campos e lameiros; por ser ainda inverno, os socalcos reverdecem de pasto que muito sobra para a meia dúzia de ovelhas que há. Os jardineiros da paisagem são estetas; cuidam o suficiente estas terras para que o abandono, os muros derruídos, ou a terra arrastada por enxurradas não vá estragar os sonhos de quem pensou voltar, ter uma casa nova e passar uma reforma descansada. A maioria destas casas está vazia.
Já não são camponeses nem agricultores os que aqui estão, porque nem é o rendimento da agricultura que os sustenta (estariam mortos de fome e de mau viver), nem são os seus pensamentos, práticas, crenças e visões do mundo aqueles que se pensa imaginando-os ao lume a rezar ladainhas e a afumar chouriços.
Por causa de uma ovelha assustada no meio do asfalto, estacou um jipe que passava interrompendo uma barulheira de motor com excesso de decibéis. Não há nada como estas paisagens rurais onde o tempo parou, exclamou uma alma suspirante depois de debitar uns diminutivos piedosos sobre a ovelha em sobressalto.
Disse rural? Sim, disse, porquê? Por nada, a realidade e o cenário confundiram-se e contradizem-se no visual da paisagem. O outro fez uma cara como se tivesse ouvido uma obscenidade, uma coisa inapropriada.
Skené, a palavra grega para cena, era uma plataforma elevada separada da orquestra dos teatros, onde se desenrolavam comédias e tragédias. Ob skené é o mesmo que obsceno, aquilo que se passava fora da cena e que não se via por ser inapropriado mostrar-se. Não esperaria adivinhá-lo mas o grego antigo às vezes dá jeito para perceber aquilo que a cena não revela ou engana. O cenário, já se sabe, não passa de cartão pintado, telas e outros artifícios.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.