OLGA Cardoso, que ficará na memória da geração dos 30 anos como a “amiga Olga”, foi apresentadora de um dos programas da manhã de maior sucesso da rádio portuguesa. Chamava-se “Despertar”, era da Rádio Renascença e criou uma legião de admiradores e ouvintes fiéis. A dupla António Sala em Lisboa e Olga Cardoso no Porto conseguiu manter o programa no ar durante 18 anos. Como a Renascença faz 75 anos, fomos atrás da amiga Olga, hoje com 77 anos, para saber o que anda ela a fazer. Descobrimos uma mulher de voz de jovem, gargalhadas sempre prontas e alguma mágoa em relação à Rádio Renascença. Numa hora de conversa, pelo telefone, como com ouvintes, disse-nos que é mulher de um amor só e que quando morrer quer que lancem as cinzas ao mar.
Tinha 15 anos quando foi parar à rádio. Como é que isso aconteceu?
É uma história muito engraçada. A matemática era o meu calcanhar de Aquiles e tive de ir para um explicador. Qual não foi a minha surpresa quando descubro que o explicador, o senhor Graça, escrevia as novelas radiofónicas que eu ouvia. Via-o escrever à máquina e dei uma espreitadela, sempre fui muito curiosa, e vi que era aquilo que eu ouvia na rádio. Disse–lhe logo que adorava conhecer a rádio, que era um sonho, e ele levou-me à emissora. Foi tudo um encantamento. E li um diálogo só para ele ouvir como é que eu soava. E gostaram.
Mas alguma vez tinha pensado fazer rádio?
Desde muito pequenina, com uns 5, 6 anos. Com as minhas amiguinhas já fazia teatro radiofónico, espectáculos, apresentava, tudo a brincar. E sempre que me perguntavam o que é que eu queria ser eu respondia: “Menina da Rádio”. Tinha uma loucura pela rádio, estudava e tudo com o rádio ligado, cantava as canções todas.
O que é que os pais disseram?
Pedi aos meus pais e eles disseram que não. Sou filha única, e há 60 e tal anos, está a ver, não é…? Para a rádio só iam pessoas assim com algum defeito. Mas eu era muito chata em pequenita e quando queria uma coisa não me calava. Então pedi-lhes que fossem ver o ambiente e eles gostaram, porque realmente a ORSEC (Oficinas de Rádio, Som, Eletricidade e Cinema) tinha um elenco com muito valor.
Começou por fazer novelas radiofónicas. Qual foi o primeiro papel que teve, lembra-se?
Lembro sim. Estava toda a tremer! Só tinha uma frase para dizer e mesmo assim tinha o papel à frente. Eu tremia, o papel tremia, e um dos colegas ofereceu-se para segurar no papel. E eu só tinha de ler: “Senhor doutor, o doente adormeceu e está calmo.” Só isto. Mas sem o papel esquecia-me logo da frase.
Fez teatro radiofónico durante vários anos e chegou a subir ao palco, nos anos 80, para representar. Nunca pensou, na altura, em seguir teatro?
Olhe, gostava. Mas sabe que no Porto não havia nada, naquela altura era tudo feito em Lisboa…
E nunca lhe passou pela cabeça vir para cá?
Não, eu nasci aqui, tinha aqui os meus pais, casei aqui, é aqui a minha cidade. De maneira que… agora passou-me o que eu ia a dizer. Eu de vez em quando tenho brancas, estou velhota…
Estava a dizer-me que gostava de ter seguido teatro mas no Porto não havia nada.
Ah! Sim, se eu tivesse nascido em Lisboa acho que teria sido artista mesmo de palco. Gostava muito de ver as pessoas que assistiam a olhar para o que estávamos a fazer no palco. Não me metiam medo nenhum, pelo contrário, adorava vê-las à minha frente. Portanto se tivesse nascido em Lisboa a minha vida teria sido diferente. Gostava muito de ter sido artista.
E depois das novelas, o que se seguiu?
Comecei a fazer o programa da manhã nos Emissores do Norte Reunidos e um outro programa, à noite. É que aqui no Norte, naquela altura, a rádio acabava à meia-noite e só abria às 8h00 e eu fui a primeira voz a passar depois na meia-noite. Tive um programa com o Carlos Silva, um locutor da altura, que se chamava “Última Hora”. E teve muita aceitação porque era o encanto de ter rádio durante mais uma hora. Depois ainda fui para a Rádio Clube do Norte fazer mais teatro radiofónico, de que eu gostava muito. E em todos os teatros onde entrei fazia de má. O autor dizia que eu tinha uma voz boa, forte, para fazer aqueles gritos. E o meu colega do mal era o Fernando Rocha, que era locutor há muito tempo e fazia umas coisas para a Rádio Renascença.
Como foi que ele a convidou?
Perguntou-me se eu não queria ir lá fazer um teste, porque a voz feminina que eles tinham ia-se embora. Eu respondi: “Então não quero?! Estou ansiosa por fazer rádio em directo, estou farta de gravações!” E eles gostaram da minha voz, do que eu fiz para lá, e foi a partir daí.
E começou a fazer o programa “Despertar”, que apresentou durante 18 anos com António Sala, em 1980.
Mas antes de fazer o programa com o Sala fiz o “Despertar” com o Fernando de Almeida, que o apresentou durante 20 anos, antes de nós. Como queriam ver como é que eu me portava nas manhãs, puseram-me umas semanas com o Fernando. Só em 1980 é que surgiu o Sala e a partir daí foi um grande sucesso.
O que é que vocês fizeram de diferente para conseguirem tanto êxito?
Não sei! Houve uma coisa que prendeu muito o público, que foi um estar em Lisboa e outro no Porto, mas dava a impressão que estávamos juntos na mesma cabine. Aliás, nós tivemos, tanto em Lisboa como no Porto, ouvintes que iam ao estúdio para ver se era verdade que estava um em cada lado. Porque nós tínhamos uma maneira de comunicar um com o outro tão perfeita que os ouvintes não acreditavam. E é engraçado porque quando eu ia a Lisboa e fazia o programa lá ao pé dele parecia que já não saía tão bem.
Como é que se faz um programa assim à distância?
Fazíamos muito naturalmente. Nós nem falávamos ao telefone para combinar se fazíamos assim ou assado, era o que saía. E como eu fiz muita coisa e ainda hoje faço, por intuição, qualquer coisa que ele dissesse eu entrava logo na história.
Houve química entre os dois desde o primeiro programa?
Sim, logo. O António tornou-se para mim o irmão que nunca tive. Eu adorava-o. Ainda hoje gosto dele. E realmente fizemos com que o ouvinte nos ficasse a escutar e arranjámos uma família enorme, onde chegava a Renascença.
E durante o programa tinha muitos ataques de riso?
Ai sim, quantas vezes… Porque o Sala tinha muito o hábito de contar anedotas e eu levava-as sempre para o outro lado, para a malandrice, e quando me começava a rir não parava. Mesmo depois de tocar um disco, quando voltava a falar com o Sala, lembrava-me e desatava-me a rir outra vez. Tivemos muitas dessas coisas.
Ainda hoje mora no prédio da Renascença. Diz-se que costumava apresentar o programa de robe. É verdade?
É verdade, sim senhora. Muitas vezes. Sabe porquê? Porque adormecia! Acordava em cima da hora e descia a correr para o estúdio para fazer o programa.
E chegaram a fazer emissões de vários locais, até de submarinos.
Sim, no Tejo e no Douro, no Castelo de São Jorge…
As pessoas iam assistir a esses programas ao vivo?
Ai, nem queira saber, era uma loucura. Está a ver a Avenida dos Aliados? Nós fazíamos o palco ao pé da câmara e tínhamos público até lá ao fim da avenida. Tínhamos ouvintes que iam de véspera, dormiam ali ao pé do palco para serem os primeiros das filas. Era uma loucura.
Recebiam muitas cartas de ouvintes?
Por semana, recebia mais de 100.
De apaixonados também?
Sim, sim. Como não me conheciam, pensavam que eu era uma miúda nova. Como tive sempre uma voz jovem, as pessoas pensavam que eu também era jovem. Só quando comecei a apresentar espectáculos com o Sala é que as pessoas viram que eu era velhota. Já tinha quase 50 anos!
É viúva há vários anos. Nunca mais teve ninguém?
Não, não, não. Minha querida, sou mulher de um só amor.
Com que idade é que se casou?
Com 28, já estava velha. Toda a gente me dizia que eu ficava para tia, mas eu nem para tia ficava porque não tinha irmãos!
E porque é que se casou tão tarde? Não pensava nisso?
Não tinha pressa absolutamente nenhuma, e dizia sempre aos meus pais que não queria casar, que queria ser livre. E olhe, de repente apaixonei-me e em seis meses casámos.
Onde é que o conheceu?
Foi no trabalho, porque ao mesmo tempo que eu trabalhava na Renascença, como não me ocupava o dia todo, também trabalhava num laboratório de medicamentos, o Java. O Virgílio [marido] trabalhava na CUF e todos os dias ligava para o Java a pedir medicamentos e era eu que atendia. Mas não nos conhecíamos. Um dia perguntei à empregada que ia entregar os medicamentos, por curiosidade, como é que ele era. Ela responde: “Ai menina, ele é um atleta que nem faz ideia, é muito jeitoso.” Nós passávamos um pelo outro à hora de almoço sem sabermos. Um dia ele ia com um colega, apontou para mim e disse: “Ainda hei–de namorar com aquela miúda.” Para grande espanto dele, o colega respondeu que eu era a menina Olga, que lhe atendia o telefone. Depois ligou-me para me convidar para ir ao cinema. E pronto, começámos a namorar.
Quantos anos esteve casada?
Fui casada 37 anos e tenho três filhos, dois rapazes e uma rapariga. E tenho quatro netas, só raparigas. A mais velha vai fazer 20 anos e as outras são mais pequeninas, uma de nove, uma de sete e uma de cinco. São umas queridas, nem queira saber. A mais parecida comigo nos gostos é a minha Inês, que é a mais velha.
É com essa neta que costuma viajar?
É sim. Agora não, porque arranjou namorado e é ele que vai com ela, já não sou eu. Mas fomos a muitos sítios. Vimos Itália toda, fomos a Inglaterra, Palma de Maiorca, Lanzarote, Tenerife… fomos ver muitas coisas. É engraçado, a Inês diz que junto da minha filha, mãe dela, portanto, eu é que pareço a filha e ela a mãe. Sou muito brincalhona e a minha filha não. É risonha e simpática e tudo, mas se eu digo alguma coisa mais… é logo: “Ó mamã, por amor de Deus!”
E foi com essa boa disposição que foi apresentar o concurso “A Amiga Olga”, na TVI, em 1993. Como é que surgiu a oportunidade?
Foi o José Nuno Martins que me perguntou se eu não queria ir. Era o início da TVI e eles queriam alguém que animasse aquilo, não sei. Nunca tinha feito televisão. Fui lá, fiz um teste para os produtores ingleses do programa, porque o formato era inglês. Naquela altura tinha muito o hábito, que entretanto perdi, logo a seguir a isso, graças a Deus, de dizer “Uau!”. E nesse teste disse “Uau!” várias vezes. O inglês que estava lá a avaliar o teste gostou e quis que eu dissesse aquilo sempre. Ainda hoje, tantos anos depois, dizem-me isso na rua.
Reformou-se em 1999… Custou-lhe?
Não, estava desejosa. O meu marido entretanto ficou doente e acabou por morrer. Não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Fiquei muito em baixo.
Mas deixar a Renascença foi difícil?
Estava ansiosa por deixar. Saí muito zangada, muito triste, amargurada. Portaram-se muito mal comigo. E quando fiz os 65 anos meti logo os papéis para a reforma. Passados quase 40 anos de Renascença. Eu que fui sempre canal 1, puseram-me um ano no regional. Não quero dizer com isto que os regionais fossem menores. Agora uma locutora que foi sempre canal 1 porem-na ali, foi um castigo.
E qual foi a explicação para lhe fazerem isso?
Preferia não falar disso. Tem a ver com o António Sala e eu não quero falar.
Gostava de voltar a fazer rádio?
Não. Vou dizer-lhe uma coisa: há 12 anos que não oiço rádio. Por ter saído tão triste com a Renascença.
Mas ainda voltou à rádio, dois anos depois, para apresentar um programa de clássicos. Fizeram as pazes?
Foi mesmo o António Sala que pediu. Doía-lhe a consciência [ri-se].
E hoje, como é o seu dia-a-dia?
Olhe, quando não vou dar uma voltinha lá fora – e não gosto muito de ir porque tenho sempre de gastar dinheiro – comprar qualquer coisita, passo os dias a ver televisão ou a ler. Gosto muito de ler. E tenho a minha Elsa, que é a minha gatinha e companhia. Vou a casa dos meus filhos ao fim-de-semana, as minhas netas vêm cá… mas sabe que eu gosto muito de estar em casa. Adoro a minha casa. Tenho uma casa simples mas gosto muito dela. A mania que eu tenho é andar sempre a mudar os móveis. Não posso ver as coisas no mesmo sítio muito tempo.
Há uns anos, quando acabou o concurso na TVI, fez uma cirurgia plástica que foi muito falada nas revistas na altura.
Tinha 60 anos quando fiz. Não gostava do meu pescoço, não gostava das minhas pálpebras, que estavam caídas de tanto anos a usar óculos, e queria levantar um bocadinho.
E gostou do resultado?
Olhe, demorou muito tempo a sair o inchaço e as negras e eu arrependi-me. Um dia estava aqui em casa, ainda não tinha saído, e pedi perdão a Deus por ter feito a operação. Porque depois não gostava de mim, sabe? Só quando voltou a ficar tudo normal é que fiquei mais contente.
E não voltou a fazer mais nada?
Não! Para quê? Agora já não é preciso.
Disse há bocado que tinha o cabelo preto. Quando é que se tornou loira?
Olhe, foi em Paris. Estava eu com o meu marido de férias e andava sempre a dizer que havia de ficar loira, porque desde pequenina que ficava encantada com as meninas de cabelo loiro, mas os meus pais não me deixaram. Pedi ao meu marido e ele disse que não, que eu ficava bem assim. Mas em Paris convenci-o. Fui para lá morena e voltei loira. Os meus filhos adoraram, nem queira saber. E nunca mais voltei a ser morena. O meu marido nunca mais quis que eu deixasse de ser loira.
Ofereceram-lhe um salto de pára-quedas no programa da Júlia Pinheiro, na SIC. Já fez o salto?
Não… o médico não me deixa! Tenho uma arritmia cardíaca e já fui parar ao hospital duas vezes. Quando eu lhe disse do salto ele respondeu: “Não deve estar boa da cabeça, Olga!” Mas queria muito ir, era um sonho que tinha. Dá-me a impressão que se hoje fosse nova estava sempre nessas coisas dos desportos radicais. Ia experimentar tudo. Mas agora já não posso.
Foi sempre foi assim, destemida?
Sempre. Olhe, eu não sei nadar, dá-me cá uma raiva isso, nem queira saber. Mas nunca aprendi. Ainda assim ia com o meu marido para o mar, agarrada a ele, lá para o fundo, com as ondas a passarem-me por cima da cabeça. Queria era saber nadar mesmo a sério porque adoro o mar, não faz ideia. Já pedi para ser cremada e para as minhas cinzas serem lançadas ao mar.
Já está a pensar nessas coisas?
Já! E já está tudo escrito, porque é assim que eu quero.
Por Diana Garrido publicado in http://www.ionline.pt/