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Os primeiros 90 anos de Agustina

Os primeiros 90 anos de Agustina

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NA VÉSPERA dos 90 anos de Agustina Bessa-Luís, viagem ao imaginário da escritora, com passagem pela casa na Rua do Gólgota, sobranceira ao Douro, onde vive há mais de quarenta anos. A família insiste que ela seja celebrada em vida, agora que a doença já não lhe permite assistir às comemorações da data.

A escrita

«O que é que a Maria Agustina gostava mais de escrever? Romances, eram os romances.» Alberto Luís, o marido de há mais de sessenta anos, conhece como poucos o trabalho da escritora. «Trabalhava de manhã e ao princípio da tarde. Tinha essa disciplina e era capaz de escrever um romance em três meses. E tinha outra caraterística: aproveitar o papel todo, de cima a baixo, não ficava nada em branco. Uma vez disse-me que o oftalmologista lhe tinha dito que os olhos estavam perfeitos. Explicou-me que aproveitar o papel todo era disciplina e economia de gestos.» «E era também uma defesa para não se dispersar», acrescenta o genro, Alberto Baldaque.

Mas o que é mais impressionante no processo de escrita é que Agustina quase não fazia alterações ao texto – riscava uma palavra aqui ou ali, mas de resto as frases saíam em catadupa, como se tudo estivesse dentro dela já muito definido quando começava a escrever e a caneta fosse apenas o terminal por onde tudo se plasmava no papel. A propósito dos 90 anos da escritora, o Círculo Literário publicará o fac simile do escrito autógrafo do romance Ternos Guerreiros (1960), uma edição para iniciados agustinianos, mas a própria Agustina faz um pouco de luz sobre a forma como escreve: «tenho um processo de criação que considero desonesto. Escrevo rapidamente. Não faço resumos, quase não tiro nada, a não ser durante as provas em que pode haver uma ligeira emenda. Mas de modo geral, escrevo rapidamente e com um texto muito perfeito, digamos assim.»

Provavelmente deveria ser feito um estudo psicológico a partir dos seus manuscritos, porque o significado dessa realização dirá alguma coisa sobre o que é a inspiração, o que será o talento, o que desperta o génio. Porque Agustina é genial nos enredos que constrói, nas personagens que desenha, como é profundíssima na observação e no pensamento sobre tantas facetas da vida.

O editor

A Guimarães Editores foi sempre a editora de Agustina, por uma ligação quase umbilical, e não deixou de o ser mesmo quando passou para as mãos da Babel, de Paulo Teixeira Pinto. «Boa parte da obra está esgotada», diz Alberto Luís, mas a editora está a corrigir isso: a obra completa de Agustina será publicada, nomeadamente uma novela inédita, Cividade, que o novo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís pretendia publicar, caso o editor não o fizesse. «Este livro tem muito das memórias de infância da Maria Agustina», diz Alberto Luís. Cividade era um povoado castrejo da Idade Romana situado em Bagunte – Vila do Conde – vizinho da Quinta de Cavaleiros onde Agustina viveu durante a sua infância.

Inicialmente, era o marido que passava a escrito os romances de Agustina. «Era eu que batia os textos à máquina, sim. Era uma trabalheira. Mas depois a Guimarães arranjou uma funcionária para fazer isso. Eu tirava fotocópias aumentadas dos manuscritos e essa funcionária tinha jeito para decifrar aquela letra. Ou seja, aí por 1969, 1970 passei a “ditador” dos livros.»

Mas não está tudo publicado, longe disso. «Há muita coisa inédita, sim. A Bíblia dos Pobres, por exemplo, foi uma série que teve o primeiro e segundo volumes, Homens e Mulheres e As categorias, publicados nos finais dos anos de 1960. Mas eu encontrei mais três originais – um completo e dois quase completos. São livros de 250 páginas cada um. Outro exemplo é o de As Fúrias, romance adaptado ao teatro por Filipe La Féria, que nunca deve ter sido publicado nesta versão teatralizada «porque encontrei aqui em casa as provas tipográficas». Tal como há muitas outras obras que nunca chegaram a ser publicadas em livro, como conferências e estudos. «E há muitas histórias e acontecimentos da vida de Agustina que tenho de ser eu a escrever, das nossas vivências, de casos. É uma vida rica, muito rica, que ela teve, que nós vamos tendo.» E solta o fio da intimidade: «Ah claro, íamos muitas vezes às compras juntos.» «E gostava muito de cozinhar e cozinhava muito bem», recorda a filha única, Mónica, que segue a conversa e a pontua aqui e ali com a certeza de uma memória sempre muito precisa e muito ligada aos acontecimentos.

Os amigos

Marguerite Yourcenar, Sophia de Melo Breyner, Eugénio de Andrade, Jorge Luis Borges, e tantos, tantos outros cruzaram-se com Agustina. Como Pablo Neruda ou J.M. Le Clezio (Prémio Nobel da Literatura 2008), que considera A Sibila uma das histórias mais bonitas que leu.

Vieira da Silva e o marido, Arpad Szenes, ocupam um lugar privilegiado na casa Bessa-Luís, desde logo através das várias pinturas que decoram algumas das paredes. Mas também de Longos Dias Têm Cem Anos, a biografia que Agustina escreveu sobre a pintora. «A primeira vez que veio a nossa casa, morávamos em Esposende. E a Vieira da Silva fumava muito. Pegou num cigarro e disse à Maria Agustina: “Não lhe ofereço porque sei que não fuma. E sabe porque é que não fuma? Porque quem escreve períodos tão longos tem de ter um certo fôlego”» conta, bem-disposto, Alberto Luís. E conta também a história de um quadro na parede. «A Maria Agustina foi a casa da Vieira da Silva e viu o quadro no chão. E disse-lhe: “Quero comprar este quadro…” “Ah esse quadro é mais do que um quadro, é quase um amuleto, não se vende”, respondeu a Vieira da Silva. “Dá-nos sorte, até foi connosco para o Brasil.” “Mas pronto, ficas com ele quando eu morrer, vou pôr no testamento.” E o Arpad, sempre brincalhão, até disse: “Olha que nunca vais ter o quadro, ela não morre, Agustina…”. Mas um dia chegou através da embaixada.»

Alberto Luís recorda também as viagens à Grécia, com Sophia e Francisco Sousa Tavares. E uma, em particular, em que Eugénio de Andrade também foi. «Oferecemos a viagem ao Eugénio que queria muito ir à Grécia, mas veio de lá desiludido – “só pensam em dinheiro, pá”, dizia ele.» «Na primeira viagem à Grécia, em 1963, fomos a Micenas. A Maria Agustina às tantas sentou-se, cansada.» Sophia e Alberto Luís continuaram a andar e, ao chegarem ao túmulo de Agamemnon, Sophia chamou Agustina. Mas ela não estava para isso. Não queria andar mais e como entretanto passou um vendedor de gelados, ela comprou um e comia-o deliciada. «Sophia chegou a Lisboa e contou “horrorizada” que Agustina nem tinha querido ir ver o túmulo e tinha preferido um gelado. Quando isso chegou aos ouvidos da Maria Agustina, ela não gostou e publicou um texto chamado “Uma limonada em Micenas”, em sátira à Sophia. Apesar disso a estima entre elas era profunda e manteve-se sempre muito forte, como se pode avaliar na correspondência, alguma até publicada. Quando voltámos à Grécia, em 1968, a Maria Agustina fez questão de ir lá outra vez e de ser fotografada ao pé do túmulo do Agamemnon.» E Alberto mostra a fotografia a comprovar o que tinha acabado de dizer.

O casal Sá Carneiro também era visita de casa, mas Agustina não gostou da forma como o homem que foi primeiro-ministro deixou a mulher quando se apaixonou por Snu Abecasis. Ficou do lado de Isabel e Sá Carneiro nunca mais voltou a ser recebido em casa de Agustina, muito ligada à religião católica.

A política

Nem só a escrita era importante para Agustina. Na multifacetada vida de Agustina não faltou também a política. Esteve para entrar no parlamento, na «Ala liberal», mas depois foi considerada pouco segura e acabou por não sair nas listas. A sua ligação mais direta foi como mandatária da candidatura de Freitas do Amaral nas presidenciais de 1986, que viriam a ser ganhas na segunda volta por Mário Soares. Ao que contam os mais próximos de Agustina, depois de tudo visto e apreciado não tinha a certeza do que teria acontecido se Freitas tivesse sido eleito. «Depois da campanha, em quinze dias escreveu o Apocalipse, um comentário às gravuras de Albrecht Durer, porque ela era assim, tinha esta facilidade de sair de uma coisa, desligar-se completamente e entrar logo noutra.»

Entre 1990 e 1993, durante o terceiro governo de Cavaco Silva, a escritora assumiu a direção do Teatro Nacional D. Maria II. E chegou a pertencer à Alta Autoridade para a Comunicação Social.

As férias

Os períodos estivais tinham os seus rituais, recorda o marido. «Durante alguns anos íamos para casa de uns ingleses na Manta Rota, no Algarve. Era quando aquilo era bom, não havia ainda estes novos veraneantes. Mas houve muitas viagens e houve ainda Guéthary, no País Basco francês, perto de St. Jean de Luz e de Biarritz, «onde passámos férias durante vinte anos, sempre em Setembro», nuns anos com as netas, noutros o neto. «Mas a Maria Agustina não gostava de praia, nem de mar, nem de rio.» E às tantas ela ficava lá quinze dias e voltava e eu ficava lá mais uma semana ou quinze dias. Ela lá não trabalhava, mas às vezes escrevia textos para conferências, porque fez várias em Bayonne, como também fez em Bordéus.» Era um tempo de outras atividades, talvez até de um banho de civilização. «Íamos sempre de carro – tive quatro Volkswagen Carocha – e a Maria Agustina às vezes ia de avião e também vinha de avião, porque se cansava.».

O reconhecimento

São inúmeros os prémios que distinguiram Agustina – o Nobel chegou a ser coisa falada, mas nunca o procurou. O reconhecimento chegou de todo o lado, mesmo dos que, politicamente, não gostavam de admitir, depois do 25 de Abril de 1974, que havia uma grande escritora que não se reclamava de esquerda. Há cartas entre Óscar Lopes e José António Saraiva em que o primeiro, que viria a pertencer ao PCP, não estava muito disposto a colocar Agustina num pedestal. Mas Saraiva convence-o: «Quanto à Agustina gostaria que me desses as tuas razões. Eu considero-a com Fernando Pessoa um dos dois escritores verdadeiramente geniais que Portugal produziu no século xx e creio que todos os outros estão muito, mas muito, abaixo deles. Mais: para mim a Agustina é a maior escritora em prosa de toda a literatura portuguesa, talvez com exceção do Fernão Lopes (…). Não entendo como a podes pôr abaixo do Aquilino.»

Hoje há uma cátedra com o nome de Agustina em Roma, na Universidade de Tor Vergata – em 2008 já foi Alberto Luís que teve de ir ler o discurso, quando a instituição atribuiu o doutoramento honoris causa à escritora – e há doutoramentos a decorrer sobre a sua obra na Sorbonne parisiense, em Boston, e em vários outros locais por esse mundo fora. Nos círculos literários discute-se a sua obra, dos romances às peças de teatro e às biografias.

Por Manuel Queiroz publicado in Notícias Magazine

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