PARA ler, antes de mais é preciso ter fome. Não aquela fome de estômago, aquela fome física que todos os dias experimentamos. É doutra fome que falo, fome de ter fome, fome de ter sede, fome de saber, fome de sentir, fome de conhecer os outros e principalmente fome de nos conhecermos a nós no mundo, o mistério de que somos feitos, o nosso lugar.
A meu ver, nem sempre conseguimos saber quando são horas de ter fome. Mas há sinais. Muitas vezes, nestas horas especiais experimentamos aquele nervoso miudinho, a inquietação, a vontade de sorver tudo como a esponja faz à água, uma dúvida grande como um poço ou montanha aos nossos pés. Quando isto acontece é meio-dia, está no ponto. Tens fome, muita fome, como tem que ser. Podes abrir um livro à tua escolha. Se for de culinária, saboreia, imagina, experimenta as texturas, degusta o sal, o doce antes de começares a misturar os ingredientes. Sabes o que eu acho? Talvez nem precises de os cozinhar e o teu alimento esteja só nesta experiência com as palavras, mesmo de culinária.
Mas há outras leituras, outros livros. A maior revelação que hoje queria trazer, como me é dado parecer perceber, é esta: Tu estás dentro dos livros. Mais ainda, os livros precisam de ti para viver. São como espelhos abertos, prontos a reflectir a tua imagem e o teu lugar no mundo. Sozinhos não dizem nada, repara que apenas criam pó nas estantes com quilómetros de palavras. São apenas palavras exiladas num país de códigos que é a língua. Os livros esperam. Pacientemente, como quem tem todo o tempo do mundo. Esperam que tu te movimentes, que te animes, que carregues no “play” do filme que está dentro dos livros. E tu és o actor principal, lembras-te, afinal estás dentro dos livros.
A palavra flor é feita de três consoantes e uma vogal. Mas uma flor, flor só tu a podes fazer na tua cabeça, flor com cor, flor com cheiro, em botão ou florida, se a quiseres florida. Porque tu sabes os códigos, sabes ler e até escrever e podes flori-la com o teu sentimento, mais colorida, mais cinzenta ou negra até. É a tua flor e só tu a podes fazer, só tu a podes ler porque é a tua flor.
Eu sei que às vezes custa começar. A mim custa-me às vezes. As palavras, por vezes, são duras, angulosas, inquietantes e difíceis de perceber. Talvez porque também haja coisas difíceis de dizer. Mas quando as percebemos experimentamos um prazer enorme de descoberta. Outras vezes os livros ajudam-nos quando estamos tristes e preocupados. Podemos sempre tomar um bom livro como um remédio que ajuda a preencher vazios nas feridas. Precisamos mesmo de um bom livro, temos uma vontade, mas não sabemos que vontade é. É fome.
Os livros, repara, continuam lá, nas estantes, como um alimento, um remédio, com a palavra flor dentro deles, mas precisam de ti. Percebes porque precisam de ti, porque tu estás dentro deles, lembras-te, és a personagem principal, o leitor.
SOBRE O AUTOR:
Óscar Possacos (1962) é natural de Sendim da Ribeira, Alfândega da Fé. Por ora vive em Paredes. Com formação inicial em arquitetura exerce a atividade de professor de educação visual. E é poeta. Publicou “Lugar Quebrado” em 1982 e “Húmida Viagem” em 1984, tendo esta última obra poética sido distinguida com o Prémio Nacional Juvenil Ferreira de Castro. Recentemente deu à estampa “Cantaria” onde revela que estamos onde somos. Colabora com o Correio do Porto desde abril de 2017.