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Para uma estética da dissonância

Para uma estética da dissonância

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PARA os antigos gregos a natureza era um cosmos. O cosmos definia princípios de ordem e de harmonia entre as diferentes partes ou seres; as proporções justas entre os diferentes fragmentos de um todo, fosse uma estátua, o firmamento ou a cidade. A ordem e a beleza do universo teriam uma explicação divina e não, como hoje, uma origem científica. Para os templos, as dimensões do conjunto e das suas partes eram função de um módulo que em geral correspondia ao diâmetro ou o raio da coluna na base do fuste. A boa medida, a eurythmia, depende dessa proporcionalidade justa.

O modelo desta razão cósmica seria ilustrado pelos números e pelas proporções geométricas. O número de ouro, secção áurea ou proporção de ouro, Ø, (phi, em homenagem a Fídias, o arquitecto do Parténon) é definida pela relação algébrica a/b = (a+b)/a ; a/b = (1+√5)/2 = 1,618….  Estas e outras proporções seriam a base de composições formais na pintura, na escultura, na arquitectura ou na música e resultariam em ideais de beleza matemática só acessíveis para mentes educadas. Que Apolo nos ilumine neste empreendimento de dar beleza ao cosmos, ou seja, cosmética.

Pelo contrário, Dionísio (o Baco romano) não era nada destes lirismos e harmonias. Para ele valiam as comédias e as tragédias, o excesso, a embriaguez, a arritmia, a vertigem, o inverno, a noite.

Por isso, quando investigou a tragédia grega (não é a de hoje) e procurou uma explicação para um código poético distinto da simplicidade ou da quietude da contemplação, Nietzsche posiciona a bipolaridade da arte fazendo-a pendular entre Apolo e Dionísio, entre serenidade e estridência, calma e ferocidade, normalidades e coisas desmesuradas e orgiásticas, entre harmonia e dissonância.

Pode não parecer mas é por causa de tudo isso que esta fotografia incomoda muito povo, criando essas tensões. Na psicologia chama-se a isso uma dissonância cognitiva, um estado mental angustiante que resulta do desconforto causado em manter simultaneamente visões, crenças, opiniões e racionalizações sobre coisas tidas como incoerentes ou contraditórias – construções gigantescas e pequenas casas, chaminés altíssimas e talhões com nabiças de amarelo florido, indústria pesada e campos de erva…, matérias explosivas e hortas sob um céu de tempestade.

Por isso, quem não conseguir olhar para isto, que siga as recomendações da terapia da dissonância cognitiva, evitando situações ou informações que aumentem a exposição ou o nível da suposta incoerência, praticando exercícios de exposição selectiva. Olhará então só para a metade superior da fotografia e pensará na potência daquela central de produção de energia eléctrica (não é nuclear e por isso não correrá o risco de cair noutra dissonância); de seguida fechará os olhos e depois abrirá lentamente as pálpebras só para ver a metade inferior e logo a verdura lhe dará sonolência e vontade de jogar futebol e caçar grilos.

Está feito; é uma espécie de regulamento escópico parecido com o zonamento urbanístico, coisa tida como produtora de ordem e serenidade como os alunos de Apolo.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

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