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Paulo Pimenta

Paulo Pimenta

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SOU genuíno do Porto. Nasci em casa da minha mãe, na praça Carlos Alberto, no Natal. Dia 24 de Dezembro. A minha mãe fez questão que nascesse em casa e foi fixe porque à noite ela já pôde comer bacalhau. Sou do Porto e isso é importante para mim — sinto-me muito ligado à cidade e toda a minha história se fez aqui. Tenho dois irmãos: a Luísa, mais velha, e o Luís, mais novo. Vivi em casa da minha mãe até aos meus vinte e tal anos. Saí quando comecei a trabalhar mais intensamente e tive um período algo afastado da família.

Depois voltei a estar em contacto com a minha mãe. Faz agora oito anos que ela partiu. No início, ela não aceitava a minha relação com a fotografia — nunca mais me esqueço da frase dela: ‘O que é isso de tirar fotografias?’. Marcou-me muito. Felizmente, ainda teve tempo de perceber a minha opção e, nessa altura, foi fantástico porque a nossa relação ficou muito mais próxima. O único problema foi ter havido pouco tempo para partilhar com ela os momentos que a fotografia me vai dando. Momentos fantásticos mas também de angústia — porque fazer isto é viver num estado de ansiedade e de constante procura. É algo que faz parte da minha vida.

O meu despertar para a fotografia aconteceu na Escola Superior Artística do Porto. Trabalhava lá, a tirar fotocópias e a dar apoio aos alunos, e comecei a ligar-me à escola. Houve uma pessoa que me incentivou a pensar na fotografia a sério e, por essa altura, comecei a fotografar. Às tantas decidi que tinha de fazer o curso superior — e o único que existia no Porto nessa época era exactamente na ESAP. Decidi trabalhar de dia, pagar os meus estudos e apostar na fotografia. Cheguei a trabalhar na Escola Superior de Educação, onde dava apoio à biblioteca e onde já fotografava muito. A partir daí as coisas começaram a acontecer.

Na ESAP havia estágios de final de curso e o jornal PÚBLICO tinha vagas. Tive o privilégio de um professor ter sugerido dois nomes de finalistas e o meu nome, apesar de andar ainda no segundo ano. Foi o meu grande salto. Para mim aquilo era um sonho: poder um dia vir a trabalhar no PUBLICO. Acompanhava alguns fotógrafos do jornal, como o Fernando Veludo que achava fantástico, ou o Paulo Ricca. Muita gente do PÚBLICO e também do Expresso, como o Rui Ochôa. Durante o estágio consegui fazer com que as coisas corressem bem. Na altura, tinha um material muito rudimentar. Mas também me convenci de que isso não contava muito. A maneira de olhar, sentir e viver o momento é que realmente importam. A máquina é um meio. Isso dá-me imenso gozo ainda hoje: saber que sou eu que mando, não o material.

Para mim, fotografar é quase uma obsessão. Faço-o de forma permanente e, muitas vezes, é o meu filtro para o mundo. Uma maneira de não ter de pensar muito no ruído que anda à minha volta. Canalizo todas as minhas energias para a fotografia. Se estiver a fazer algo que me dá prazer, para mim é óbvio que tenho de ter a máquina comigo. O não ter a máquina e ter vontade de fixar faz-me ficar completamente fora de mim. Por isso ando sempre com ela: não gosto de viver com o receio de poder estar num sítio, ter vontade de fotografar e não ter forma de o fazer. O telemóvel serve só para apontamentos. A máquina dá outra liberdade: a minha forma de ver o mundo é com ela.

Trabalhar no PÚBLICO continua a ser um desafio. E acordar todos os dias e ir para um sítio onde me sinto bem, mesmo com todas as mudanças que já houve e que continuam a acontecer no jornalismo, é um privilégio. Continua a haver neste jornal um grande respeito pelos fotógrafos. E o meu grande desafio diário é pensar que estou a trabalhar para um leitor que acredita no jornal e em mim. Isto é um prazer e ao mesmo tempo um peso e uma responsabilidade enormes. Tenho de dar sempre o meu melhor, mesmo que esteja a fazer a coisa mais simples. É também por isso que sinto esta ansiedade e esta obrigação de estar sempre a fotografar e sempre em busca de algo. E depois há a questão do fotojornalismo: trabalho com a pessoa que vai escrever e essa união existe. Não somos duas coisas separadas. De cada vez que saio para uma reportagem tenho de saber exactamente o que vou fazer e comunicar com o jornalista que vai comigo. Usar a fotografia como um caminho para chegar às pessoas, para dar coisas e receber também.

Não faço só fotojornalismo porque não trabalho só para o PÚBLICO. A área do espectáculo foi desde sempre um fascínio. E tive — continuo a ter — o privilégio de poder acompanhar companhias há vinte e tal anos, como as Boas Raparigas, o Visões Úteis, o Teatro Plástico. Ou, mais recentemente, o Crinabel, que é um grupo que me põe nas nuvens. São pessoas especiais que me dão muita força e me ensinam a ver o mundo de outra maneira. As artes de placo —­ desde a música, ao teatro, passando pela dança e performance — foram sempre um lado que procurei.

Antes de estar no jornal — e de não saber se algum dia concretizaria esse sonho que me parecia inatingível — comecei a fotografar espectáculos. Pagava os meus bilhetes e conseguia ir a concertos, sobretudo no Coliseu do Porto. O Sampaio, um amigo que controlava as entradas, deixava-me ir fotografar para a frente. O meu caminho na fotografia passou por todo o processo: desde o analógico até à era digital e ao vídeo. Isso tem sido um desafio brutal. Havia coisas fantásticas no jornal: quando trabalhávamos para a primeira [página] tínhamos de trabalhar a cores, o resto era a preto e branco, para a revista era em diapositivos. Agora, tudo se resume ao digital. Uma imagem que demorava meia hora a fazer agora demora segundos — e em segundos está em todo o mundo. Em relação ao mundo do espectáculo as pessoas foram investindo em mim. Fui desenvolvendo com várias companhias projectos em que não fazia só o registo das peças de teatro, por exemplo, mas ia mais além. Quando há tempo, eu próprio leio o texto da peça, dialogo com o encenador e os actores e crio o meu cenário fora de palco. Ou seja, pego nos actores e crio a minha história através do texto. Tiro-os do palco.

Fascinam-me muito as artes de palco, é um outro mundo que nos permite voar. O tema social comecei a acompanhar mais de perto quando entrei para o jornal. O meu primeiro baque, uma das experiências que mais me marcou, foi vivido com a Ana Cristina Pereira, [jornalista do PÚBLICO], quando fomos passar o Natal a uma fábrica abandonada com toxicodependentes. E com o José António Pinto, o grande Chalana, que me ensinou e continua a ensinar muito. Foi a primeira vez que convivi tão de perto com toxicodependentes, num cenário de mortos vivos. Fica-se completamente desarmado, sem saber o que fazer. Noutra ocasião, também com a Ana Cristina e com o Chalana, fomos às duas da manhã para uma fábrica abandonada na rampa do Freixo, em Campanha. Estávamos a fazer um trabalho sobre sem-abrigo. Chovia torrencialmente. Nunca mais me esqueço que havia um senhor que estava num colchão completamente alagado. Eu fiquei tão incomodado que quase que não fotografei. Mas quando lhe perguntei se o podia fazer, sem o identificar, preservando a privacidade, ele desata a chorar e diz: ‘Pode fotografar-me à vontade, o meu filho pôs-me fora de casa só porque bebi um copo a mais.’ Quando se ouve uma coisa destas é impossível perceber. O filho até era um fulano com um certo estatuto na cidade. Fica-se completamente desarmado, sem saber o que fazer. O que vale é que existem pessoas como o Chalana, que activou logo os meios todos. No dia seguinte, o senhor já estava numa pensão.

A partir de certa altura, já não me chegava ir fazer a notícia ou a reportagem para o jornal. Comecei a pensar que tinha de fazer qualquer coisa através do meu trabalho que pudesse também ajudar a denunciar, alterar, incentivar. Por isso é que também na área de palco fiz com a Luísa Pinto, encenadora do Constantino Nery, um projecto que usou a fotografia como meio para alterar a vida de alguém. Esse projecto foi muito interessante. Ela desenvolveu uma ideia de pegar em reclusas e transformá-las em divas do século XX. E convidou-me para ser o fotógrafo. Portanto, fizemos sessões fotográficas em que cada uma das reclusas representava uma personagem, desde a Coco Chanel à Chavela Vargas. E usamos a fotografia para mostrar às pessoas que há outros mundos. Um dos últimos projectos que fiz e que me marcou muito foi o Projecto Troika onde, com sete fotógrafos e um realizador, fizemos um documento para memória futura sobre a crise em Portugal.

Nesta área social, tenho tido oportunidade de desenvolver coisas sobretudo com o Chalana. Ele pensa como eu também penso: quando há problemas, é preciso resolvê-los. E ele é fantástico nisso. Muitas vezes passa por cima das burocracias, as pessoas estão sempre primeiro. Sempre me fascinou esse lado dele. Eu sei que não posso pensar que vou mudar o mundo, mas se todos os dias puder mudar qualquer coisa, nem que seja uma vírgula, então eu vou mudar. Se puder, quando estou a fotografar, provocar um sorriso numa pessoa, isso é um passo. Tive um projecto com o Chalana que me marcou muito.

Durante um ano, fizemos o ‘Na Casa de’. Quando falei que o fotojornalismo já não me chegava, o que queria dizer é que tinha necessidade de falar mais com as pessoas, estar mais tempo com elas, perceber melhor, acompanhar mais e ter mais tempo para as pessoas. Surgiu esse projecto de denúncia de casos de pobreza extrema. Foi brutal. Desde a dona Emília, que tinha tido um AVC, e vivia no Freixo numa barraca onde nem água tinha. Andou assim anos. O marido tinha de ir buscar água para lhe dar banho. A coisa que mais me ficou na memória foi o facto de ele lhe dar banho de água fria quando iam ao centro de saúde. Os enfermeiros recusavam-se a ir lá. E o marido fazia aquilo, com tanto cuidado. O nosso objectivo era fazer esse trabalho e pô-lo à mostra num sítio que tivesse mesmo o confronto com o resto do mundo.

A FNAC convidou-me para expor e isso levou estas pessoas a todo o país. Fazia uma imagem da pessoa, preservando a identidade, e um pormenor da casa. Foi a prova de que a arte pode mudar alguma coisa. Passado um ano, tive o prazer de ir oferecer à dona Emília e ao marido uma fotografia deles, já na nova casa. Foram situações muito delicadas. Como a de uma senhora que por se ter enganado a fazer o pedido à câmara para fazer uma vistoria à casa, ficou sem obras durante muito tempo. A senhora vivia com dois filhos adultos e só tinham um quarto, a cozinha e um sítio para tomar banho. Quando os filhos estavam em casa ela tinha de dormir na cozinha, que era minúscula, quando eles tomavam banho ela tinha de sair para lhes dar alguma intimidade. Passado pouco tempo de lançarmos o ‘Na Casa de’ a senhora teve finalmente uma vistoria da câmara e teve direito a outra casa. Ou a história do senhor Carlos, que vivia perto da estação de Campanhã e era uma pessoa brutal. Todos os dias era o primeiro a sair de casa e o último a chegar. Tinha vergonha do sítio onde vivia. Teve um percurso normal em termos de trabalho, mas de um momento para o outro ficou desempregado, divorciou-se, voltou à casa da mãe. A mãe entretanto morreu e ele ficou a viver numa barraca onde todos os dias tinha de passar pelo sítio onde ela vivia… Ele só ia lá dormir. Todos os dias vestia o fato para sair de casa. Dizia-me assim: ‘Olhe que eu não sou isto que vê em minha casa. Eu sou outra pessoa. Estou aqui por um azar.’ O telhado da casa acabou por cair e ele foi para uma pensão. Lidar com estas situações não é fácil.

Enquanto estou nos sítios tendo abstrair-me ao máximo e ser imparcial. Não interferir. Deixar as coisas acontecer quase como se não estivesse lá. Mas como é óbvio quando pego no trabalho para editar ou quando falo disto, volta tudo. Todos os dias me lembro destas pessoas. Penso como é possível que vivam naqueles cenários. E penso que não estou livre de cair numa situação daquelas. Cada vez mais as coisas estão instáveis. Eu tenho emprego, mas isso não quer dizer que tenha emprego para toda a vida. Não quer dizer que esteja sempre bem, que fotografe sempre bem, que me queiram sempre perto. Aquelas pessoas tinham vidas normais: tinham uma casa, um casamento, filhos, um emprego. E, de um momento para o outro, ficaram na miséria total. É óbvio que, para além de ter de lidar com as imagens que faço, aquilo fica no meu interior. E depois é difícil lidar com as pessoas que dizem mal da malta do RSI ou dos que andam a pedir ou dos migrantes.

Este trabalho faz-nos ver e sentir de outra maneira. E cria uma ansiedade permanente de querer fazer mais alguma coisa através dele. Essa é a minha angústia: o saber que, muitas vezes, não vou alterar nada, apenas mostrar. Isso desarma-me. Mas depois há o outro lado: quando temos a possibilidade de mudar uma vírgula. O que quero é continuar a ter o gozo de fotografar e de mudar vírgulas. Quero que ninguém me crie a falta de vontade de fotografar — e julgo que isso nunca acontecerá. A minha luta de todos os dias é continuar a fotografar. Continuar a acreditar que este é o meu caminho. Todos os dias ser mais exigente comigo próprio. É claro que o caminho que aí vem — dos jornais, da internet, do mundo — me mete medo. Mas combater o medo é também uma missão. E eu combato-o a fotografar. Fotografar, fotografar, fotografar. E nunca adormecer.”

Por Mariana Correia Pinto (texto) e Manuel Roberto (fotografia) publicado por Porto olhos nos olhos

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