Pois.. não sei.
É difícil saber quem somos “nós” e o “nosso território”. Já se percebeu a limitação do Estado e da administração pública naquilo que as utopias do planeamento e do ordenamento do território consideravam ser o alcance e a eficácia da regulação pública. O que chamamos território é um nó cego de dinâmicas, contradições, processos, actores, interesses, etc. É produto e parte da sociedade com todo o seu potencial de diversidade e contradição. Enquanto país temos recursos limitados, dívidas e mazelas de séculos de administração que oscila entre regimes autocráticos, elites que orbitam o sistema do poder, centralismo e burocracia; outras vezes, democracias burocratizadas, dominadas por blocos tecnocráticos com pensamento e acção (menos) apoiada em somatórios de assuntos sectoriais e visões simplificadas (isso explica o labirinto das leis, a obesidade jurídica e regulamentar, a via-sacra burocrática agora em regime informatizado ainda mais surdo e mudo, etc.). Enquanto estado-nação estamos cada vez mais diluídos noutros sistemas que nos escapam completamente; desconfinados, temos capacidades muito limitadas de produção de respostas locais a sistemas e processos que vão de um lado ao outro do planeta, com um poder de condução das coisas incomparavelmente superior ao do Estado, entretanto capturado pelo capitalismo liberal e seus negócios e interesses – não posso entender como é que a ética do serviço e do interesse público podem conviver com a lógica simples e absoluta do dinheiro que faz dinheiro; o preço é a única medida do valor das coisas.
Enquanto economia/sociedade semi-periférica, acumulando facetas semelhantes às economias/países centrais e prósperos, com a pobreza, a necessidade de emigrar, o estar desamparado como se viu com a crise dos incêndios; enquanto sociedade/território marcado por fortes contrastes, do mais avançado cosmopolitismo à mais radical periferização; enfim, enquanto mosaico de tantas diversidades…
Por tudo isso é difícil dizer quem somos nós e o nosso território como se fossem entidades claramente designáveis e minimamente homogéneas e/ou coesas.
Não é necessariamente para desculpabilizar ou para assumir a fatalidade. Somos o que somos com as nossas mazelas, limitações e muita capacidade de desenrascar qualquer coisa algures, poetas, loucos, tecnocratas, indiferentes, mulas de trabalho, poupadinhos ou gastadores à tripa forra, espalhados pelo mundo, ora aqui, ora a caminho ora algures por um ano ou uma vida presos a laços fortes ou a vagas recordações da terra do futebol, dos navegantes, do Ronaldo ou dos pasteis de bacalhau e dos vinhos e do comer como não há em lugar nenhum. Não consigo amargurar-me com o país, sinto-me parte dessa molhada, tão disfuncional. Nunca iria para a Alemanha ou para a Suécia ou para essas coisas que dizem organizadas.
Vai longa a missa e se vier o terramoto que estatisticamente já deveria ter vindo, ainda ficaremos mais deprimidos. Resistir, portanto. Empenhar-se cada um em fazer melhor, em pensar a responsabilidade que lhe pertence na relação com os outros, em cuidar daquilo que se sente que pode estar à nossa mão, pequenas coisas de que é feito o mundo.
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
NOTA DO EDITOR: na troca de correspondência sobre A RUA ESTRADA, onde tanto se analisa o comportamento dos indivíduos, organismos públicos e privados na relação com a estrada, quisemos saber da opinião de Álvaro Domingues sobre a tendência crónica de Portugal para a tragédia. A resposta está aí em forma de apelo.