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Três milhões de degraus por amor aos gatos

Três milhões de degraus por amor aos gatos

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A CAUSA felina obriga-a a um duplo desce-sobe diário das Escadas do Barredo, desde casa até à borda do Douro. Contas por alto, a paixão de vinte anos de Arlete Gomes pelos gatos, medida em degraus, daria para a imaginar do tamanho de três milhões: íngremes, dos mais doridos que nas cidades haverá no mundo. Texto e fotografia de Augusto Baptista publicado in http://azulcanario.blogspot.pt

Ao aproximar-se a hora, começam a rondar-lhe a casa. São dois. Impacientes, atentos ao mínimo sinal, sobem, descem, sem se afastarem. Às vezes deitam-se, a olhar a soleira. Um desiste, vai-se. O outro, paciente, espera. Aprendizado de anos, sabe que não tardará. A confirmar as expectativas, a porta abre-se, ela sai: devagar, amparada na canadiana, sacos de plástico com comida a atrapalhar as voltas da chave.

Sem pressa, gato e Leta, como na Ribeira do Porto é conhecida Arlete Gomes, descem o íngreme escadório do Barredo. Dobrada a esquina ao fundo, face ao nicho do Senhor da Boa Fortuna, afogam-se em novo sobressalto de degraus.

Vencida em poucos passos a Rua do Barredo, outrora da Mancebia, chão de “mulheres que faziam pelos homens”, submergem nas sombras de um novo lanço de granito em socalcos. Neste troço apertado, as casas quase se tocam nas alturas, se ouvirão os segredos, confidências, ais de amor dos vizinhos, uns dos outros.

De repente, rente ao piso, na fresta escura de um portal metálico, é largado o primeiro contributo. Dentro, sem se darem a ver, dois gatitos e a mãe, me diz Leta, tarrincam o granulado. Nesse instante – tortuosos, os caminhos da razão – me ocorre o relato de Wilfred Burchett quando, em tempo de guerrilha no Vietname, mão furtiva, solidária, lhe garantia mantimento.

No sopé deste trajecto se abre a Rua da Lada numa espécie de terreiro: bastidores do Douro turístico, roteiro de melancolias e misérias, retiro de cigarro para o pessoal dos restaurantes. No ar, um cheiro a fritos, a comida; no alto, a esvoaçar, roupa de muitas cores dependurada.

Logo à esquerda, num patamar, Leta se acerca de um buraco na parede. No pavimento, como toalha de piquenique, estende uma imaculada folha de plástico, desvenda o farnel. Numa vasilha opalina, verte água. Límpida. Da parede, atraídos pela refeição, pelo doce das palavras, vão saindo: bem tratados, sem pressa nem atropelo, civilizadamente, vão saindo os candidatos ao repasto. Hoje falta um, os conta Leta.

Neste ponto do trajecto, a assistência é demorada. Tempo de relação com a vizinhança, combina de entreajudas, conversa de gatos. “Faço isto há vinte anos, todos os dias, pelo fim da tarde. Dou-lhes latas, secos, granulado, o que o médico mais aconselha. É uma despesa grande. Comida. Castração: 40 euros cada gata. Vou-me remediando, sem pedir nada a ninguém.” Mas porquê esta cruzada, tanta caseira? “Dediquei-me. E, sinceramente, com os gatos, ao contrário do ser humano, não tenho decepções.” E as pessoas? “Entendem. Admiram-me.”

De novo, pés a caminho pela Rua dos Canastreiros, entre arcadas sombrias sob o soalho do casario, desagua na Praça da Ribeira. Tarde de Maio quente, o largo apinha-se de gente a beber nas esplanadas, guarda-sóis ainda abertos. E há mirones, automóveis, vendedores, música. O costumeiro, o ruidoso frenesim. Manclitante, Leta, no reboliço. Para trás, os gatos, que nenhum arrisca a confusão.

No Cais da Estiva, logo ali, desce escadas, rumo ao fosso empedrado. E por aquele chão cabisbaixo alonga a caminhada, até à frente, ao dobrar do muro, quase. Justo ao finar de uma esplanada que nesse correr há, se queda. Monta arraiais junto à mesa derradeira, às cadeiras, a um bojudo ferro de amarração de cordame náutico. E a vejo retirar apetrechos, como atrás fizera, afadigar-se em mudas de água.

Estranho procedimento, que nas cercanias, perscrutei, nem sombra de felina presença.

De repente, rente ao muro de pedra velha, por uma fenda inesperada, invisível, mete a mão. E fala. Entre palavras carinhosas que verte para o fundo do buraco, confiante, mete a mão, solta um punhado de grânulos secos. Outro, outro. No fundo, no negrume da fissura, movimentos adivinhados: um gato! “É uma gata”, precisa Leta. Conta a história: “Descobri-a, quando era pequenina. Cresceu. Ficou cheia, consegui tirá-la, levá-la para castrar. Quando a trouxe, tornou a esconder-se aqui.”

Aqui, chão turístico a fervilhar por cima, pulsam dois olhos por baixo, se acolhe nas trevas uma vida, uma parte de nós e da cidade.

“À noite ainda tenho de voltar ao Cais” – lamenta Leta. “Há uma que só aparece e vem ter comigo a essa hora. Não sei onde se esconde.”

De regresso, esta mulher franzina, reformada, que veste luto duas vezes, pelo homem, pelo filho, insinua-se pela arcada do Postigo do Carvão, que a espera um peludo comensal, atravessa o Cais da Ribeira, esgueira-se entre as ruelas fundas do Barredo, penosa ascensão até casa, sempre a subir até casa, cem degraus que doem.

Chega extenuada, gatos atrás, dois ou três. Impertinentes, querem entrar. “Não posso. Já tenho uma, Joaninha.”

Ver o trajeto solidário aqui.

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