COM algum atrevimento face à idade do interlocutor, perguntei o que andava ele a fazer na Rotunda da Boavista, feito menino a espantar transeuntes, arco a cantar nas pedras do passeio. A resposta revelou história com contornos demorados. E um sonho fatal. Ambos com pressa, marcámos encontro para depois.(1) Texto e fotografia de Augusto Baptista publicado in http://azulcanario.blogspot.pt/
Um sonho fatal
O Vítor, Vítor Manuel Pinto Matos, nasceu no Porto em 1932, tem 80 anos. Cobrador e fiscal dos STCP, (2) aí trabalhou até à reforma. Antes conheceu outros empregos: sapateiro aos 12, litografia aos 15, fábrica de borrachas depois. Neste ínterim, andou na tropa. Casou, teve filhos.
E a vida, a sua vida, seria episódio manso, não fora um acontecimento que há um ano lhe sobressaltou os dias, um sonho fatal, como ele diz. História que a seu modo conta e eu, a meu jeito, escrevo:
Nasci no Hospital de Santo António, fui criado nas Escadas dos Guindais, aqui no Porto. Aos 7 anos os meus avós e a minha mãe foram morar para Gaia e eu entrei na escola.
Por ter passado no exame da 1.ª classe, o meu avô disse à minha avó, parece que o estou a ver, “Vou comprar um arco para o pequeno”. Passei logo a ser dono de um arco, mesmo sem ainda o ter: aquilo que o meu avô prometia, fazia.
Na altura, o arco seria uma coisa cara, que eu gostava de ter um, não tinha. O meu avô deve ter feito sacrifício para mo dar. Ele era desses que andavam a carregar na Ribeira fardos de bacalhau, dos navios para os carros de bois. Vi-o uma única vez, nunca mais lá tornei. Tive pena de ver o meu avô naquele serviço.
Passado pouco tempo ele deu-me o arco. Daqueles que cantam na rua. Até aos 12 anos o arco passou a ser a minha perdição. Com essa idade arranjei emprego, fui trabalhar de sapateiro para o Largo dos Aviadores, em Gaia. Já não podia andar de arco. E, desde aí, nunca mais lhe peguei.
O ano passado, em Junho, o dia não me recordo, tive um sonho. Sonhei que andava de arco por aí a correr. O meu arquinho! Foi um sonho fatal. De manhã acordei e disse para a minha mulher, Vais ter paciência, vou comprar um arco. E ela, que não fazia ideia do que isso era, “Um arco?!”
Comecei a tentar saber onde o havia de arranjar. Como moro perto da Rua da Senhora do Porto, encontrei um amigo, quase vizinho, perguntei-lhe. E ele, “Ó pá, atravessas a rua de Monte dos Burgos, na esquina tem um garageiro. Vai aí.“ Nós chamamos garageiro, não sei se este será o nome próprio, a uma casa que vende e ajeita bicicletas.
Cheguei lá, aparece-me um rapaz com uma simpatia fantástica e eu, Ó amigo, vai ficar zangado, mas olhe, sonhei. Contei-lhe a história. E ele, “Já sei o que quer, espere.” Passados minutos, vem com dois aros de bicicleta, um mais largo, outro mais estreito. Aquilo nem precisa de gancheta, até com um pau se conduz. E eu, Se calhar não vou ter dinheiro. Ele ficou a olhar, e diz-me “Isso é lixo!”
Aquele aro era bom, não tinha outro, mas – também a perguntar – resolvi descobrir um melhor. “Ó pá, na Rua do Almada é capaz de ter.” Andei para baixo, para cima e, quase ao princípio, no n.º 155, encontrei uma casa, uma casa, posso dizer o nome?, Rocha & Leitão.
Apareceu-me um rapaz muito delicado, o Helder, depois é que soube o nome, que me prometeu arranjar. Isto em Junho, só que se passou Julho, Agosto, Setembro, Outubro… Passaram-se os 4 meses, depois tive uma alegria. No mês em que fazia anos (aproveito para dizer que 7 de Outubro é o dia em que abriam as escolas antigamente), o rapaz telefonou-me “Ó senhor Vitor, o homem prometeu-me que para a semana vem o arco.”
Tinha lá um sinal, que eu dei-lhe cinco euros de sinal, cheguei ao fim e ele veio com dois arcos. E eu disse, Ó pá, isso é muito. E ele, “Um é de graça pelo tempo que isto demorou, o outro são dez euros. Deixou cinco, paga cinco.“
Hoje tenho esses dois arcos e, em casa, tenho ainda os aros de bicicleta, tenho-os lá, não os deito fora. Tenho dois arcos e dois aros.
Entretanto, um vizinho meu, reformado da GNR, Narciso, bom rapaz, viu o meu entusiasmo, fez-me uma gancheta. Depois é que me fez esta, melhor para o paralelo. No paralelo, mesmo devagarinho, o arco salta muito da gancheta para fora, custa mais.
O arco com que ando agora é igual ao que eu tive em pequenino, o toque é tal e qual. Chamam a isto verguinha. A gancheta é feita de arame de ferro. É forte mesmo. O arco vai ti ti ti ti. Faz-me lembrar, na Páscoa, as campainhas de Nosso Senhor.
Sempre que posso dou a minha volta. Tem-me feito muito bem, nunca tive problemas com as pernas, nem com nada. As pernas sinto-as mais rijas, mais pernas. Tenho dias em que não posso andar. Se for com a mulher a qualquer lado, fazer umas compras ou assim, não levo o arco. Por uma questão de depois a ter de ajudar.
Ando com o arco aqui no Porto para todo o lado. Se hei-de ir sem nada, vou com o arquito, com ele no chão. E sempre sozinho. Gostava, sinceramente, de andar com mais gente. Mas ninguém quer vir comigo. O meu filho mais velho diz–me, “Ó pai, vai ao Conde Ferreira!” O meu irmão, “Vai ao Magalhães de Lemos, pode ser que eles te dêem remédio para isso.”
Quando vou na rua, as pessoas ficam admiradas. Os da minha idade dizem-me, “Ó amigo, que saudades”. Às vezes paro, conto que tive um sonho, conto esta história. Aqueles que já têm conhecimento disto dizem, “Deixe-me dar uma volta”, Ó senhor, está aqui o arco, mas não vá para longe, que depois tenho de ir a correr atrás de si. O gajo pode fazer como o outro das fotografias, dá o kodak e, enquanto vai para ser fotografado, olha para trás e já lá não está ninguém.
Para andar de arco é preciso saber. Dá-se um lanço com a mão esquerda e a outra empurra. A técnica é talvez na mão, suponho eu. Se o arco entortar, tento pô-lo no outro lado, deve ser isso. Sinceramente, não posso dizer.
A minha ideia é andar com o arco até poder. Enquanto tiver força e vontade, ando sempre. E quando um dia me apagar, antes disso digo à mulher, Pega neste arquinho, só um, mete-o dentro do caixão. Para ir comigo. É o meu sonho, é uma das coisas que hei-de pedir. Outra é que quero ser cremado. Da maneira como isto está, vejo muita falta de respeito, as campas a ganharem ervas. Queimadinho, estou arrumado. E ao arco depois lá saberão o que lhe hão-de fazer, que eu não sei. (3)
Notas
1. 16 de Julho 2013: a data deste encontro.
2. Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.
3. Insistente, o Vitor pediu-me que nesta prosa evocasse os seus amigos de menino, velhos companheiros de arco e gancheta, que gostaria de reencontrar. O Serafim Manteiga. O Belmiro Tavares, “um rapaz que tinha uma voz fantástica”. O António, “nós chamávamos-lhe Tesinho, porque ele sofria das costas, andava sempre muito direito…” E mais dois ou três, que os anos lhe varreram o nome. Todos de Gaia, que, nas Escadas dos Guindais, Vitor não se lembra de ninguém.
queria tanto ter um arco e uma gancheta !
nunca tive esse brinquedo que sempre me despertou a atenção.
nunca vi ninguém a andar com ele e também não sou desse tempo. talvez por isso gostaria muito de passar por essa experiência. também eu gostaria de andar na rua com ele e ser dona de um «arco e gancheta». imagino o divertido que seria até conseguir meter o arco de pé…. saiam da frente pf… eh eh eh
já procurei, já pedi, mas em vão.
um dia vou ter um arco e gancheta !