ASSINALA-SE hoje (19-07-2015), o centenário do nascimento de Virgínia Moura, abnegada resistente antifascista e destacada militante comunista. Integrou diversas estruturas legais e semilegais da oposição democrática, o que lhe valeu perseguições constantes, 16 passagens pelas prisões do fascismo, torturas e maus tratos. Pela coragem e determinação que sempre revelou, granjeou a admiração dos que com ela privaram: Teixeira de Pascoaes falava de uma «força da natureza» e Ferreira de Castro de «uma das mais corajosas mulheres de Portugal, que muito tem sofrido por amor ao povo». Areosa Feio, que com ela participou na direcção do Movimento Nacional Democrático, destacava a «mulher combatente, sempre presente em todas as frentes de luta».
Se há dirigentes e militantes do PCP que se destacaram na luta clandestina contra o fascismo, com todos os sacrifícios que essa dura vida acarretava, outros ganharam o seu lugar na história pela firmeza e coragem com que enfrentaram o fascismo no desempenho de tarefas legais ou «semilegais», fundamentais para a luta do Partido e particularmente expostas à vigilância e à repressão. Virgínia Moura é um destes casos.
Militante comunista desde a primeira metade dos anos 30, manteve até ao 25 de Abril de 1974 (e daí por diante) uma intensa actividade política, maioritariamente «aberta», em várias organizações e movimentos unitários da oposição democrática. Depois da actividade desenvolvida no Socorro Vermelho Internacional, nas lutas estudantis e na solidariedade com os republicanos espanhóis, Virgínia Moura participou, a partir de 1944, no Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), no Movimento de Unidade Democrática (MUD), no Movimento Nacional Democrático (MND), nas estruturas de apoio às candidaturas presidenciais de Norton de Matos, Ruy Luís Gomes, Arlindo Vicente e Humberto Delgado e interveio como activista ou candidata nas «eleições-farsa» de 1969 e 1973. Integrou, ainda, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, o Movimento Democrático de Mulheres, a Associação Feminina Portuguesa para a Paz e a Comissão Nacional para a Defesa da Paz.
A sua intervenção política antifascista passou, também, pela colaboração em jornais e revistas como Outro Ritmo, O Diabo, Pensamento, O Trabalho, Foz do Guadiana, Ecos do Sul, Presença, Seara Nova e no semanário Sol Nascente, do qual foi fundadora e colaboradora sob o pseudónimo de «Maria Selma». Assinou vários livros com o seu companheiro, António Lobão Vital, entre os quais se destaca uma tese apresentada ao II Congresso Republicano de Aveiro sobre «As Casas dos Trabalhadores dos Centros Urbanos». Notabilizou-se ainda pelas conferências em que participou – junto de figuras como Maria Lamas, Isabel Aboim Inglez e Teixeira de Pascoaes – e pelos entusiasmantes discursos que proferiu: na memória fica a sua intervenção no grandioso comício no campo hípico da Fonte da Moura, de apoio à candidatura do general Norton de Matos, que o fascismo não teve forças para impedir.
Coragem face à violência
Por esta permanente e coerente actividade antifascista, Virgínia Moura foi um alvo constante da repressão fascista: os seus passos eram constantemente vigiados pela PIDE e não teve oportunidade de exercer a sua profissão de engenheira civil (foi a segunda mulher a formar-se nesta especialidade em Portugal). Muito embora o despacho que suspendia a sua actividade profissional tenha sido anulado em 1959 pela Ordem dos Engenheiros, os seus projectos continuaram a ser assinados por outros colegas, para evitar que fossem reprovados. Igualmente impedida de leccionar no ensino oficial ou de ter qualquer outro emprego público, Virgínia Moura deu aulas a título particular no seu escritório no Porto.
Entre 1949 e 1962, Virgínia Moura foi presa 16 vezes, condenada em três delas nos tribunais plenários, torturada e agredida em plena rua. Mas nenhum dos métodos aplicados pela PIDE, dos mais selvagens aos mais refinados, foi alguma vez capaz de quebrar a sua coragem e a sua firmeza. No interior das prisões e perante os esbirros da polícia política, sempre confiou na causa por que lutava e contou com o apoio dos trabalhadores e do povo português, que se mobilizaram pela sua libertação.
Uma das suas prisões (juntamente com a restante Comissão Nacional no MND e outros destacados democratas) deu-se no início de Fevereiro de 1952, nas vésperas de uma reunião de ministros dos países da NATO em Lisboa, cuja contestação o fascismo procurou, embora sem sucesso, abafar. A exigência da libertação de Virgínia Moura e dos seus companheiros faz-se ouvir nas ruas do País, através das campanhas de solidariedade promovidas pelo PCP e pelas forças democráticas.
No julgamento, em Maio desse ano, a Associação Internacional dos Juristas Democratas fez-se representar e os presidentes do Conselho Mundial da Paz e da Federação Democrática Internacional de Mulheres, Frédéric Joliot-Curie e Eugénie Cotton, enviaram protestos para o tribunal e mensagens de solidariedade aos réus. Dois anos depois, é novamente presa (uma vez mais com os seus companheiros do MND) por defender publicamente o direito dos povos de Goa, Damão e Diu à autodeterminação e posterior integração desses territórios na União Indiana.
Liberdade!
Se Virgínia Moura era já, à data do 25 de Abril de 1974, uma das mais prestigiadas figuras da oposição democrática no Porto, a sua intervenção na Revolução só veio aumentar o reconhecimento popular pela sua firmeza, determinação e coragem, que uma vez mais demonstrou. Logo no dia 26, esteve à frente da multidão que se concentrava na Rua do Heroísmo, no Porto, junto à sede da PIDE, a exigir a libertação de todos os presos políticos. Momentos depois, da varanda do edifício onde tantas vezes fora detida e tantas violências sofrera, encontrava-se ao lado dos militares quando estes anunciaram a libertação dos antifascistas e a detenção dos «pides».
Nos meses e anos que se seguiram, Virgínia Moura continuou a ser uma destacada militante comunista, participando activamente no curso da Revolução e contribuindo para a afirmação e reforço do Partido na cidade e no distrito do Porto. A sua presença em comícios, manifestações e sessões de esclarecimento foi constante nesses tempos intensos. A sua integração nas listas do PCP, da Frente Eleitoral Povo Unido (FEPU) e da Aliança Povo Unido (APU) e consequente eleição para diversas instituições, foi outra das vertentes da intervenção política de Virgínia Moura.
Pela sua intensa actividade e pelo seu exemplar percurso de vida, Virgínia Moura foi condecorada, em 1985, pelo então Presidente da República Ramalho Eanes com a «Ordem da Liberdade». Três anos depois, é a vez da Câmara Municipal do Porto a agraciar com a «Medalha de Honra da Cidade», gesto repetido em 1991 pelo município de Gondomar. Recebeu, também, a «Medalha de Honra do Movimento Democrático de Mulheres».
A maior homenagem, contudo, seria prestada pelo povo português e, em especial do Porto, que exigiu a sua libertação sempre que foi presa e que, em 1998, fez do seu funeral uma expressiva manifestação de apreço e gratidão por uma vida intensa dedicada à causa da liberdade, da igualdade, da paz e da justiça social. Virgínia Moura dá nome a diversas ruas em cidades de norte a sul do País e o seu busto está colocado junto à antiga sede da PIDE no Porto.
Um combate duro e desigual
Durante a longa e tenaz resistência que opôs à ditadura fascista, e fundamentalmente após a reorganização de 1940-41, o PCP assentou a sua acção revolucionária numa forte e disseminada organização clandestina e num sólido aparelho técnico, onde eram produzidos o Avante!, O Militante e muitos outros órgãos partidários e unitários e folhetos de agitação. No caminho que definiu para o derrubamento da ditadura e para a conquista da liberdade (que a Revolução de Abril haveria de comprovar nas suas linhas gerais), o Partido sublinhou o papel decisivo que assumia o estabelecimento de alianças sociais e políticas tão amplas quanto possível em torno desses objectivos primordiais e a necessidade de aproveitamento de todas as possibilidades de acção legal.
Isto não significava qualquer ilusão acerca da natureza do fascismo nem uma subestimação do seu carácter repressivo. Não implicava, tão pouco, uma subversão da prioridade a conceder à organização e acção clandestinas. Tratava-se, sim, de potenciar a acção de massas, de forçar o fascismo a recuar, de alargar as fileiras do Partido.
Ao longo dos anos, o PCP canalizou quadros e recursos para a criação e desenvolvimento de movimentos de unidade antifascista, agregadoras de diferentes tendências políticas e ideológicas e sectores sociais (a abrangência de cada um deles variou de acordo com o contexto político e a correlação de forças existentes em cada momento). Estruturas como o MUNAF, o MUD, o MUD Juvenil, o MND e, noutro plano, as organizações de mulheres e de defesa da paz e as várias comissões «eleitorais» foram em grande medida dinamizados pelo PCP: muitos dos seus dirigentes eram comunistas e vários dos seus activistas tornar-se-iam, com o tempo, militantes e dirigentes do Partido.
As campanhas «eleitorais», os comícios, as petições pela paz, contra a repressão fascista ou pela libertação dos presos políticos e as sessões de esclarecimento, promovidas por estes movimentos, levaram mais longe a luta pela liberdade e pela democracia. Grande parte das vezes, a polícia intervinha e prendia activistas e dirigentes, mas nunca conseguiu pôr fim à luta do povo pela democracia.
Foi a este combate, duro e desigual, que Virgínia Moura dedicou durante muitos anos as suas imensas capacidades e a sua contagiante energia.
Por Gustavo Carneiro publicado in Jornal «Avante!»