NO artigo A crise da política brasileira e a pesca do bacalhau publicado nesta revista, argumento que a questão de fundo que deveria estar no centro do debate público é a persistência de um modelo económico baseado na depredação de recursos naturais. Um modelo de velhos ideais e falsas promessas de emancipação do povo brasileiro, defendido por sucessivos governos dos mais diferentes espectros políticos. Os ideais de ordem e progresso estão de tal modo enraizados na história do Brasil que se confundem com a sua identidade nacional. Uma história onde a violência, a escravatura e a destruição da natureza foram tantas vezes legitimadas em nome desses ideais. Mas se podemos reconhecer pontos de convergência entre as agendas de desenvolvimento económico dos diversos protagonistas contemporâneos deste modelo, dois meses do governo interino de Michel Temer chegariam também para esclarecer suas diferenças.

As movimentações recentes do legislativo no setor da energia nuclear constituem a melhor ilustração tanto destas diferenças como dos seus pontos de convergência. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional PEC 122/2007, recentemente encaminhada para o plenário do Congresso Nacional. A PEC 122/2007 propõe a abertura do setor nuclear a investidores nacionais e internacionais, permitindo a concessão de contratos de exploração do urânio brasileiro a empresas privadas. Esta proposta foi originalmente apresentada pelo deputado tucano Alfredo Kaefer durante o segundo governo de Lula, no qual o seu Ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (reconduzido três anos depois pelo governo de Dilma) chegou a anunciar em 2008 a meta de construir 60 usinas nucleares no Brasil.

O renovado entusiasmo político pela PEC 122/2007 revela em toda a sua extensão a agenda neoliberal do governo interino, o que não é uma novidade. O que é novidade, é que o relator do PMDB responsável pelo encaminhamento desta proposta, tenha anexado a esta a PEC 41/2011. Esta segunda proposta, originalmente apresentada pelo deputado Carlos Sampaio com a intenção de proibir a construção de novos reatores nucleares, foi contraditoriamente apensa à primeira. Na verdade a PEC 122/2007 contradiz a PEC 41/2011, ao permitir “a produção de energia elétrica a partir de fonte nuclear pelo capital privado”. Para compreender as motivações políticas da criação desta antinomia jurídica é preciso considerar os lucros imediatos da venda de urânio para o estrangeiro contra os insumos de médio e longo prazo envolvidos no desenvolvimento de tecnologia nuclear no país.

O Brasil possui uma das maiores reservas geológicas de urânio do mundo, conhecidas por yellow cake[1]. Segundo o Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) o Brasil poderá auferir uma receita de US$1,5 bilhões por ano com a exportação de urânio enriquecido. No atual estado de fragilidade das contas públicas, e com a indústria petrolífera ameaçada pelos baixos preços do petróleo, o governo interino sabe que depende da exploração deste filão. Desde que Temer empossou os seus ministros, demorou pouco mais de um mês para fechar o primeiro contrato, firmado com a empresa argentina CONUAR, para a exportação de quatro toneladas de pó de dióxido de urânio. O mega-negócio do “bolo amarelo”[2] afigura-se muito promissor ao governo interino, com perspectivas de lucro astronómico na concessão de novos contratos de exploração do minério.

Mas Temer tem ainda um pequeno obstáculo para garantir essa galinha dos ovos de ouro. É que a eventual participação do Estado na construção das 4 novas usinas nucleares anunciadas pelo anterior Ministro de Minas e Energia, poderia absorver os lucros obtidos pela exploração de urânio, no caso desta decisão permanecer sob a alçada da Comissão Nacional de Energia Nuclear. O valor destes investimentos não é do conhecimento público, mas estima-se que o Brasil terá gasto cerca de $USD 45 bilhões[3] com o plano da Nuclebras e o plano nuclear militar, que resultaram na construção das usinas nucleares de Angra 1 e 2, mais cerca de $5 bilhões para a construção da terceira unidade ainda não concluída. Com a recentemente adquirida capacidade tecnológica para o enriquecimento de urânio no país, os futuros investimentos no setor poderiam ser pagos, pelo menos parcialmente, pelas exportações de urânio. Segundo o Jornal Estadão, tudo indica que o governo de Dilma já teria iniciado negociações para vender urânio enriquecido para a China, Coreia do Sul e França, e em Julho de 2014 foi firmado um acordo de cooperação no setor nuclear com a Rússia.

Esta racionalidade económica não é interessante para o Governo de Michel Temer, porque inviabiliza as perspetivas de lucro do negócio de urânio a curto prazo. Mas com a habilidosa associação da PEC 122/2007 à PEC 41/2011 (que inclui também a criação de uma nova entidade reguladora do setor designada pelo atual governo), ficam criadas as condições para operar todos os contratos de exploração e exportação de urânio a empresas internacionais, evitando a obrigação onerosa de canalizar os lucros correspondentes para o setor. Por outro lado, legitima demagogicamente a sua proposta de emenda constitucional perante uma boa parte da opinião pública que contesta a construção de novas usinas pelo Estado, mas subverte o espírito da PEC 41/2011 ao defender entregar o setor à iniciativa privada. Segundo a PEC 122/2007 a construção de novos reatores nucleares passa a constituir matéria de negociação política “caso a caso”, abrindo a possibilidade ao governo de vender concessões a “usinas controladas por capitais particulares”.

Se considerados os impactos socioambientais associados à contaminação das águas provocada pela exploração de urânio, os custos de longo prazo da produção de energia nuclear, os riscos de proliferação de armas nucleares através do possível desvio de urânio para outros fins, ou o perigo de acidentes e ataques terroristas, não é difícil concluir sobre a insustentabilidade das decisões estratégicas dos sucessivos governos que levaram ao momento crítico atual. A diferença é que nos anteriores governos liderados pelo PT o projeto aceleracionista se legitimava no fortalecimento do Estado provedor, enquanto o governo atual visa a maximização de lucros de curto prazo e a “dinamização do mercado” através do licenciamento e concessão de contratos de exploração a investidores internacionais. Ambos estão errados na defesa de uma matriz energética ultrapassada, que não serve o interesse das pessoas nem do planeta mas sim dos grandes poderes hegemónicos que resistem teimosamente a mudar suas tecnologias e seus modos de reprodução de capital.

Sob o lema tautológico da governabilidade, Temer procura legitimar seu projeto de poder na congregação de apoio parlamentar numa estrutura pluralista de grupos de interesse que se parecem ter definitivamente demitido de qualquer exame de coerência ética.  Mas se o urânio é a galinha dos ovos de ouro do seu governo, o seu ovo-de-colombo pode ainda explodir nas suas mãos, revelando toda a sua podridão. A esperança derradeira está na resistência organizada a toda e qualquer tentativa de mineração de urânio em território nacional, à semelhança de movimentos populares que já ocorreram no Brasil. Mas para que isso aconteça em tempo hábil é urgente superar velhos paradigmas, refletir sobre os erros do passado e reivindicar outros futuros: ousar sonhar um Brasil diferente.

No Brasil de hoje, a falta de mobilização dos cidadãos parece estar associada à ausência de novos ideais, e a um défice de reflexão crítica sobre os seus modos de produção e consumo de modo a infletir sua trajetória histórica desastrosa. A exploração do urânio brasileiro traz uma nova dimensão geopolítica que pode, pelo menos potencialmente, superar o atual vazio político dominada por egoísmos locais e nacionais. Ela permite enquadrar o debate público sobre o futuro do Brasil, numa discussão mais ampla sobre os riscos da poluição radioativa no planeta. E permite refletir também sobre a necessidade de reinvenção das prioridades dos brasileiros em todos os setores da sociedade, incluindo engenheiros e cientistas, pelas tecnologias que promovem, os campos de interesse em que se movem, e o conhecimento que fomentam.

[1] Yellow cake é o nome do livro que denuncia a venda de 27 toneladas de urânio para o regime de Saddam Hussein durante a ditadura militar brasileira. O autor do livro, Alexandre von Baumgarten foi assassinado. Segundo o livro, o tráfico de urânio para o Médio Oriente teve a participação do proprietário da fábrica de material bélico Engesa, José Luiz Whitaker Ribeiro, e do então governador Paulo Maluf. O negócio de urânio com o Iraque foi confirmado em 1991 após a Guerra do Golfo por inspetores da ONU. Do manuscrito original, algumas páginas desapareceram após a morte de Baumgarten. Este artigo é dedicado à sua memória.

[2] Bolo amarelo é o nome de um fórum de discussão no facebook aberto a todos os interessados no tema da energia nuclear, que visa divulgar e debater informações sobre ações e políticas de mineração, enriquecimento e proliferação de urânio brasileiro. Interessados podem ver também o blog da articulação antinuclear brasileira.

[3] Os valores estimados baseiam-se nas informações divulgadas no Jornal Globo de 28/7/2015, no Jornal Estadão de 22/5/2016 e na Folha de São Paulo em 6/7/2016.

Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta.

Partilha
2493
COMPARTILHAR

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here