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Alfredo Costa Monteiro e a poesia sonora

Alfredo Costa Monteiro e a poesia sonora

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FOI em Marselha, no centro internacional de poesia, que Alfredo Costa Monteiro descobriu os autores e os textos que o motivaram a misturar duas atividades que há anos vinha praticando: o texto e o som. Além de se expressar na língua materna, o português, também o faz em francês e espanhol, o que o torna, nesse aspeto, diferente dos restantes poetas sonoros. Diz que talvez ande à procura de uma língua do inconsciente, daquilo que a língua nos quer dizer e que quase nunca sabemos ouvir. Será aquela a verdadeira linguagem a que ouvimos no Sismógrafo?

Por Paulo Moreira Lopes

Como e quando surgiu a vontade de dedicar-se à poesia sonora?

Não surgiu só de uma vez, tiveram que ser várias etapas; quando era estudante de Belas Artes, em Paris, em finais dos anos oitenta, já me dedicava a escrever poesia, mas era uma forma muito similar à poesia visual. De facto, apresentei um livro de poemas misturando francês e português no exame final. Depois de Belas Artes, quando cheguei a Barcelona, fui deixando pouco a pouco as artes visuais e comecei a participar em projetos de música improvisada, que acabaram por ser a minha actividade principal. Mas continuei a escrever, e a fazer experiências que nunca foram apresentadas em público.

Foi então que no ano 2000 tive uma bolsa como artista visual para ir a Marselha, e foi lá que veio a vontade de misturar essas duas atividades que já levava anos praticando: o texto e o som. Veio também pelo convite de uma editora de lá, chamada L’Ovni Tendre, para participar numa coletânea de poesia sonora.

Era a primeira vez que uma peça de poesia sonora minha era editada. Isto animou-me a continuar.

Que autores ou movimentos o influenciaram?

Durante essa estadia, passava horas no CiPM, o centro internacional de poesia de Marselha; lá descobri muitos autores e textos, alguns que já conhecia de nome, e outros aos quais não tinha tido acesso antes. Nessa época, era material muito difícil de encontrar porque tinha muito pouca distribuição.

Marcaram-me muito por uma parte os letristas, e por outra Bernard Heidsieck e Gherasim Luca. Os primeiros, pelo trabalho que tinham feito sobre a sonoridade da língua, a descomposição da palavra e a estranheza sonora e os outros dois, pela relação que mantinham com a semântica, mas sempre a partir de um aspeto sonoro.

De facto, poderia dizer que é mais ou menos entre essas duas linhas que o meu trabalho atual se situa.

O tipo (diferente do seu conteúdo) de trabalho que produz atualmente corresponde a algum estilo seguido por outros artistas ou é original?

Não sei se o meu trabalho é original; para afirmar isto, seria preciso conhecer tudo o que foi feito neste campo, mas ao ser uma prática bastante minoritária, houve certamente muitas coisas que, talvez por falta de meios, infelizmente não foram referenciadas.

Há um autor espanhol, o Julián Rios, que também mistura várias línguas, mas a abordagem é bastante diferente da minha; ele escreve principalmente em espanhol com excertos em outras línguas; é mais narrativo, não tem uma preocupação constante com o som, e não há muita interação entre as línguas que utiliza.

No campo da poesia ou da poesia sonora, não conheço trabalhos similares ao meu; mas isto não quer dizer que não existam.

Como dizia, não me preocupa saber se o meu trabalho é original ou não, porque já não acredito muito na originalidade; acredito mais na aprendizagem e na sinceridade do autor: com isto quero dizer que não me importa tanto que uma obra não seja original, se for realizada com autenticidade, se o autor for capaz de interiorizar uma informação já existente e atualizá-la, dando-lhe una nova leitura. Se o propósito é ser criativo, então haverá sempre algo novo no que não o é.

Acho que não existe construção identitária que não seja cultural, exceto em casos extremos, como o autismo. Estou convencido de que poderíamos encontrar antecedentes em muitas formas artísticas que já conhecemos; que a História não os tenha referenciado, não quer dizer que não tenham existido.

Já sabemos que muitos autores foram reconhecidos em detrimento de outros, a miúdo igualmente interessantes mas que não tiveram tanta sorte; e de vez em quando, descobrimos maravilhas de algum desses autores desconhecidos, e temos a agravável sensação de fazer-lhes justiça; de repente damo-nos conta de que quem nos parecia tão interessante não o é tanto.

Não acredito que as coisas apareçam do nada, assim de um dia para outro, porque a cultura não é outra coisa senão capas e mais capas de informação consensual.

Entendo a palavra original melhor como algo que está fora das convenções. E isso é o que procuro num autor, uma identidade própria, que seja uma voz singular no meio das outras vozes. E sobretudo que me conte ou me mostre algo que eu não sei ou de uma maneira que nunca tivesse imaginado; não preciso da arte que me dá o que já tenho ou que já conheço, gosto de perder-me naquilo que pensava ter a certeza de saber.

O objeto do seu trabalho está relacionado com o significado ou com o significante? Explicando melhor: explora a semântica das palavras ou sons que emite/produz ou a sonoridade dos sons ou palavras que pronuncia independentemente do seu significado (cria uma melodia)?

Trabalho com ambos, mas talvez haja uma preponderância do significante, porque acho que abre mais possibilidades. Nunca abandonei o significado, e às vezes até utilizo alguma forma narrativa, embora seja bastante abstrata; nunca é um significado claro, porque acho que para que haja liberdade de interpretação e para que haja um desapego ao sentido, é preciso desafiar a lógica ou desmontar a cronologia.

Trabalho com significantes e significados cruzados, com palavras, que escritas em português, por exemplo, têm um som parecido e significados diferente em francês ou em espanhol. O meu interesse centra-se na utilização de aliterações, palavras polissémicas, homonímias ou palíndromos que faço interagir de uma língua a outra.

De facto, a construção do texto sempre se faz a partir de regras e constrições que decido antes de começar a escrever. O poema evolui a partir da última palavra que foi escrita, porque é ela, segundo o seu significado ou o som que possa ter em relação à seguinte, que vai determinar a direção do poema.

Uma vez inserida a palavra ou o grupo de palavras que vêm a seguir, volto para atrás, de maneira a verificar como soa o que acabo de escrever e se tem sentido com o resto do texto. Um passo para a frente e dois passos para atrás. E assim, sucessivamente.

Estou sempre a orientar o texto, a descartar ou a trocar palavras para que não me escape completamente. Às vezes, toma direções que nunca tinha imaginado; parece que a mecânica das palavras é que decide, independentemente de mim; não escolho obrigatoriamente a palavra que gostava que fosse, mas a que a língua ou as línguas me sugerem. Muitas vezes, parece que o texto se está a escrever sozinho, numa espécie de auto-escritura. E não digo isto pensando em alguma força externa ou oculta, ou outra coisa pelo estilo. Sou materialista e não acredito nessas coisas. Não, são realmente estruturas intrínsecas à língua, à maneira de como as palavras se juntam, ou às possíveis combinatórias sonoras.

Creio que a língua tem ainda uma infinidade de possibilidades e recursos que estão por descobrir.

O escritor Francisco Duarte Mangas diz que ficou fascinado pela palavra Brévia. Para si também há palavras que o fascinam, que o cativam, independentemente do seu significado?

Sim, diria que isso é uma constante no meu trabalho. Não só palavras que já existem, mas também neologismos que utilizo para que de repente, apareçam espaços neutros no texto; espaços que não estejam codificados, que não possuam carga psicológica nenhuma, onde o ouvinte possa perder-se e não se possa agarrar ao significado. Só ao som. Acontece também com frases inteiras ou fragmentos de frases, cuja combinatória torna incompreensíveis quando lidas, e que só à leitura é que o significado pode ser revelado. É um método para desfazer a resistência e as expetativas do leitor e assim, poder levá-lo onde o quero levar.

Às vezes, durante a elaboração, palavras ou frases ficam a ressoar na mente durante dias ou até semanas. É como se precisassem de ser usadas ou gastas, para serem aprovadas; são ditas e repetidas, em voz alta e mentalmente, devem demostrar que continuam a ter poder de fascínio para serem aceites. Aliás, poderia dizer que escrevo em voz alta porque a intenção de cada poema é sempre a de ser lido em público, sem que passe necessariamente pela leitura do ouvinte como intermediário; é uma maneira de voltar à oralidade do texto e experienciar a efemeridade do direto.

A combinação de palavras é muitas vezes mais importante do que as palavras em si, porque é o que dá a continuidade sonora ao texto; o som é sempre determinante, é a partir dele que trabalho com o significado.

É um tipo de construção similar à montagem cinematográfica, onde o som e a imagem devem funcionar juntos, mas não necessariamente justificar-se um ao outro; também escrevo por sequências, que têm de ser conetadas umas às outras. Gosto de ver imagens com sons que não as ilustram e que narram outra coisa do que se vê; este tipo de recursos oferece outra capa de leitura que não está ditada pela relação imagem-som; é um terceiro elemento que acho fundamental para a interpretação e é uma maneira de perverter o real, escapando deste tipo de hiper-realismo que a maior parte do cinema oferece.

Tem algum tema predominante nos seus trabalhos?

Não sei se lhes poderia chamar temas, ou se o são, mas vêm raramente de antemão. Costumo começar um texto por uma frase, uma ideia de estrutura, uma norma ou palavra, mas poucas vezes por um tema. Como dizia antes, a direção do texto acontece durante a escrita, e é ditada pelas palavras que podem funcionar com o conjunto. Inevitavelmente, vão aparecendo e vão-se repetindo expressões e contextos que acabam por assimilar-se a temas.

É um método de escrita que pode parecer analítico e frio, mas é também uma maneira de lutar contra o pathos que encripta a poesia numa forma mais do que caduca. E além disso, acho que um poema não tem que ter obrigatoriamente um tema; pode até não ter nenhum.

Seja como for, os que aparecem nos meus poemas são os que quase sempre apareceram na História da arte: o ser, o espaço, a morte ou o tempo.

Para mim, o tema não é tão importante como a maneira de o abordar; e é certo que a abordagem é determinante para a perceção global. É um pretexto, uma razão para escrever, porque o ato de escrever não precisa de justificações, exceto a de escrever. Se num poema, a palavra silêncio se repetir umas vinte vezes, será que é um texto sobre o silêncio ou sobre a repetição? Tenho textos que ainda não sei do que falam.

Mas à parte de temas propriamente ditos, não posso negar intenções próximas do primeiro romantismo e sobretudo, do existencialismo. São correntes que atravessam grande parte do que faço, mas que não são fáceis de detetar, já que se escondem detrás de um rigor sempre presente ou dito de outra maneira, de um minimalismo radical.

Quando atua ao vivo que preocupação tem para além da emissão dos sons (indumentária, luz do espaço, objetos de suporte da leitura, etc)?

Uma atuação é um ato de entrega, onde tudo tem importância. Desde a luz até à maneira como estão colocadas as cadeiras, tudo são signos para serem interpretados, quase tanto como o texto. A estes parâmetros, acho que se lhes deve dar a importância que têm, porque são parte de um todo; são eles que fazem a diferença entre uma leitura privada e uma leitura pública.

Podem ser esses parâmetros algumas das razões pelas quais o mesmo objeto provoque sensações diferentes porque foi representado em situações diferentes.

Sem buscar nenhuma teatralidade e sem exagero, procuro que cada leitura tenha uma certa coerência com o espaço onde se apresenta. De facto, costumo escolher as peças que vou ler em função da circunstância, do tamanho, da forma ou da reverberação do lugar da atuação.

Procuro dar ao ouvinte as melhores condições de escuta possíveis em função do lugar, tento fazer com que lhe seja cómodo ouvir textos que às vezes não o são.

Em que línguas incide o seu trabalho?

Escrevo principalmente em português, francês e espanhol, embora ultimamente, tenha também começado a escrever em inglês e catalão. Trabalho com as línguas que falo e, sobretudo, com as que melhor tenho interiorizadas, de maneira a poder soar intimamente em cada uma delas.

Sou consciente de que é um trabalho que faz e desfaz a identidade, porque é uma maneira de entender o mundo fora de um centro. Não existe um eixo de pensamento, que depois possa ser levado a outra interpretação; cada ideia evolui no contexto linguístico que lhe é adequado. Nesse sentido, há como um equilíbrio na maneira de pensar, que acho que deve ser comum às pessoas que falam várias línguas (com o mesmo nível em todas, claro está).

Pessoalmente, não sinto que haja uma hierarquia nas que melhor falo, sinto-me à vontade em cada uma delas. Já que tenho esta possibilidade de viajar de uma língua para outra, porque não fazê-lo? Mal sabia que, em criança, ao emigrar com a minha família para França, essas fronteiras reais que cruzei pela primeira vez de assalto, viriam a ser cruzadas simbolicamente muitos anos mais tarde.

E é também uma preocupação política, já que uma das funções da língua é de territorializar o ser; fora da língua, parece que não existimos, ou existimos pouco. É bem sabido que a língua amolda o caráter e o pensamento… até formatá-los.

Tento, com o meu trabalho, dar outro status à língua que não seja só o de delimitar o pensamento, e fazer com que possa existir fora daquilo que está codificado e por extensão, imposto. Foi o que fizeram os dadaístas, que transformaram radicalmente a poesia em subversão, e muitas vezes, só com fonemas.

Talvez ande à procura de uma língua do inconsciente, mais perto da linguagem, de uma habilidade mais do que de uma técnica, do que está por detrás ou por debaixo das palavras, e que soa mais como uma vibração do que como um discurso bem ordenado; aquilo que a língua nos quer dizer e que quase nunca sabemos ouvir.

Claro que é difícil encontrar no público pessoas que falem estas três línguas, mas o propósito não é necessariamente a compreensão nem o didatismo, para isso estão as academias. O propósito é deixar que surja o que de desconhecido levamos dentro, essa parte nossa que é mais importante do que pensamos: tanto eu, quando leio, como o ouvinte quando me escuta. Para parafrasear Artaud, matar a língua é matar a fonte de todos os mal entendidos.

A língua pode condicionar o resultado da obra? Ou seja, há línguas mais propícias a certos temas ou a certos tipos de trabalhos?

Sim, a língua condiciona totalmente o tipo de trabalho. Por exemplo, o francês é muito rico em palavras polissémicas, o que oferece imensas possibilidades de interpretação. Antes de começar uma peça, há sempre um tempo de indeterminação quanto à escolha da língua; mas a decisão vem sempre com as regras que me imponho. Costumo escolher a língua ou as línguas que vou utilizar, em função daquilo que quero construir, do que cada uma delas me permite.

Alguns dos meus textos são só numa língua porque o trabalho sobre a fonética é sensivelmente diferente; o resultado buscado não é a passagem de uma língua à outra, mas uma sonoridade particular que tenha uma musicalidade própria, e isso muitas vezes dificulta a compreensão; é quase sempre a combinatória que produz este efeito sobre palavras que, ditas separadamente, seriam perfeitamente inteligíveis.

Embora trabalhe numa modalidade onde a língua é dificilmente compreensível pelo jogo sonoro e fonético que utilizo, o ouvinte tem de se aperceber que estou a falar na língua dele para perceber que não percebe. Muitas vezes, soa a poesia fonética, mas com palavras normais e correntes.

Trabalho com algumas especificidades de cada língua e é o que dita a forma final.

O facto de produzir em várias línguas e, em consequência, ser obrigado a pensar em diferentes línguas, com universos semânticos distintos, ajuda ou dificulta o resultado das obras?

É curioso, porque quando penso, não tenho a certeza de fazê-lo numa língua ou noutra; acho que penso em impulsos: a lógica do pensamento encadeia-se tão depressa que não dá tempo de formalizar-se numa língua concreta. Por isso, ou pelo menos no meu caso, a língua só surge depois: quando falo, escrevo ou leio. Talvez porque tenha interiorizado estas três línguas já há muitos anos.

Não diria que dificulta o resultado das obras, mas aumenta o tempo de elaboração porque oferece muitas mais possibilidades. Cada decisão é primordial para a direção posterior do poema. É por isso que sempre trabalho com regras pré-estabelecidas. São limites que ajudam a que o texto possa ter uma certa coerência, e não vá por qualquer lado; também é uma maneira de estimular a imaginação, porque dá a possibilidade de explorar ao máximo cada material. Essas regras definem também o propósito de cada obra, dando-lhes uma personalidade própria.

Tenho sempre a preocupação de trabalhar numa só ideia, porque gosto de ser preciso naquilo que faço e também porque dá uma maior coesão ao texto. Claro que ao utilizar palavras polissémicas em cada língua, as possibilidades multiplicam-se por três; um texto pode sofrer muitas transformações porque há muitos fatores em jogo, mas é parte do processo. Há muitas hesitações, momentos de espera, de rutura… é um processo muito lento e monopolizador, que demora muito tempo em tomar uma forma definitiva.

Enquanto artista de poesia sonora identifica-se como sendo português, espanhol ou francês (Fernando Pessoa dizia que a sua pátria era a língua portuguesa)?

Realmente, não me identifico muito com nacionalidades, mas sim com culturas. O conceito de nação é político e criado pelo estado, por isso é que não me identifico com ele; e é tão perverso que, para muita gente, até se pode tornar num sentimento. Volto ao que dizia antes, a língua pode ser um vínculo ao serviço do poder (o que está a acontecer em Catalunha), uma maneira de estabelecer fronteiras para facilitar o controlo, dominar e possuir.

Concordo com Pessoa, mas também com Thomas Bernhard que disse numa entrevista que as fronteiras da nação dele começavam onde o olhar dele já não podia chegar. Parece quase uma definição ingénua, mas não é; isso seria não ver o cinismo de uma resposta como essa que é simplesmente uma anti-definição porque rejeita completamente o conceito de nação. E tenho a certeza de que muita gente aceita a frase de Pessoa porque é Pessoa, mas que no fundo, não a percebe bem. Pedem-nos sempre para nos definirmos, porque uma indefinição não pode ser arquivada. Mas a poesia na sua essência tem de conter uma certa rebeldia, senão, não é poesia para mim. Rebeldia na intenção ou na forma, mas rebeldia. A substância da poesia que me interessa é de escapar à norma, de ser capaz de sacudir o real, de pô-lo de pernas para o ar.

Talvez seja por isso que não utilizo uma só língua, ou para desfazer as fronteiras que as separam. Já que tenho de enfrentar limites, prefiro enfrentar os meus.

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