Certo dia, enquanto me ocupava a coser um pequeno botão de camisa que se tinha desprendido após um enorme espirro, ocorreu-me, como se me tivesse tornado uma experiente costureira, dirigir algumas palavras de reconhecimento ao honesto botão da camisa, a este inocente e modesto rapazito, palavras murmuradas para mim mesmo, sendo por isso proferidas de forma ainda mais sincera.

Querido botãozinho, dizia eu, quanta gratidão e reconhecimento te são devidos por aquele a quem tu durante tanto tempo e durante tantos anos (sete anos, creio) serviste de forma fiel, zelosa e perseverante, e a quem, apesar de todo o esquecimento e desdém para contigo, nunca intimaste a um pequeno elogio, algo que apenas hoje sucede, quando por fim compreendi aquilo que significas e qual o teu real valor. Tu, que durante todos os teus longos e pacientes anos de serviço jamais te colocaste em primeiro plano para assim surgir a uma luz vantajosa e engraçada ou produzir algum efeito de luz ofuscante e chamativo; tu, que sempre permaneceste na mais imperceptível discrição com uma modéstia comovente e encantadora, impossível de ser louvada o suficiente, praticando a tua querida e bela virtude num estado de perfeito contentamento.

Como me encantas por mostrares o poder da honestidade e do zelo, não carecendo de elogios e de reconhecimento a que aspiram todos aqueles que realizam algo.

Sorris, meu caro, e reparo que já aparentas estar um pouco usado e esgotado, meu velho! Tu, ó absolutamente formidável! Deverias servir de exemplo a todos aqueles que por pura dependência se viciam em reiterados aplausos, desejando morrer e afundando-se em dor, desgostos e mágoa, se não forem constantemente acariciados, afagados e mimados pela boa-vontade e pela elevada consideração de todos. Não fazes grande alarido de ti próprio, és apenas – ou pelo menos assim o aparentas – o propósito da tua própria vida, consagrando-te inteiramente ao silencioso cumprimento do dever.

Tu, tu és capaz de viver sem que alguém, sequer remotamente, saiba que existes, tu és feliz porque a modéstia se satisfaz a si mesma e a lealdade se sente bem consigo. Tu és aquilo a que se poderia chamar uma rosa esplendidamente perfumada, cuja beleza quase que permanece um mistério para si própria, cuja fragância emana sem a menor intencionalidade.

O facto de, como já disse, seres o que és e como és enche-me de fascínio, toca-me, agarra-me, comove-me e faz-me pensar que neste mundo, tão pródigo em fenómenos desagradáveis, surgem de vez em quando coisas que, a quem as vê, os tornam felizes, joviais e satisfeitos.

in Cinza, agulha, lápis e fosforozitos & outros brevíssimos textos sobre quase nada, Assírio & Alvim, maio 2023, tradução de Ricardo Gil Soeiro, página 26

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