NO dia 29 de Setembro de 2017, Alberto Pimenta recebeu-nos em sua casa, numa Mouraria que já não é o que era em 2000, quando foi viver para lá. Subimos vários degraus, e as nossas cabeças fizeram caso do aviso “cuidado com o galo”, a três degraus de chegar à sua porta. Levámos um papel com 20 perguntas possíveis e não esperávamos as 20 respostas obtidas. Mas Alberto Pimenta pediu-nos para ler cada uma delas e disse que, apesar de algumas parecerem perguntas de televisão, iria responder a todas, dando conta da sua experiência de vida, a única coisa de que cada um pode falar e não daquilo que se leu nos livros. E isto é a entrevista possível, an interview, nas palavras de Alberto Pimenta, uma entrevista, uma vista entre a realidade e a fantasia.

Jogos Florais: Gosta de poesia? 

Eu respondo com uma imagem saborosa. É como arroz, depende da maneira de o fazer. Posso gostar muito. Há um certo tipo de arroz que eu adoro, como se faz no Porto, por exemplo, que é um arroz a fugir, com bastante líquido, com estrugido, que aqui em Lisboa se chama refogado, com estrugido de cebola, com temperos muito bons, e depois sempre com qualquer acrescento de vegetal ou também de animal, especialmente do mar, por exemplo, arroz de polvo. À maneira do Porto é, de facto, delicioso, porque escorrega, não é? As coisas que nós comemos começam por ser deliciosas e são deliciosas até ao fim na boca, escorregam. Com poesia é exactamente a mesma coisa, tal e qual, não faz diferença nenhuma.

JF: Acha que a poesia é um género sobrevalorizado?

Bem, eu não sei onde. Talvez nas universidades, talvez nas aulas de poesia, talvez para alguns poetas que só falam de poesia, não têm outra conversa. Há poetas que não sabem distinguir entre a razão da poesia, que é uma razão que não é…, não está no correr utilitário da vida, mas será um intermezzo, uns interlúdios. É preciso uma disposição especial e uma razão especial para fazer poesia, portanto também para falar dela. Ela não será sobrevalorizada a não ser nesses casos, e nesses casos eu nem diria sobrevalorizada, eu diria… é uma obcecação ou profissional, para professores que têm falar de poesia, que dão muito valor àquela de que gostam, ou que têm de ensinar; e é uma obsessão para aqueles que fazem poesia assim sistematicamente, a vida deles é de manhã à noite fazer poesia, e a poesia nesses casos, de manhã à noite, e ao lanche, não pode ser boa.

JF: Quando fizemos essa pergunta, estávamos a pensar no caso português, se a poesia é sobrevalorizada em Portugal. 

Ah, não, de maneira nenhuma, de maneira nenhuma… Em Portugal o que acontece é que existe, por parte de um certo grupo erudito ou culto, essa ideia de que a poesia está um pouco acima do nível médio, e o nível médio é baixo. Na Alemanha, que eu conheço muito melhor, onde há menos e melhores, de longe, melhores poetas, e sempre houve, e não é preciso chegar ao senhor Goethe, nem chegar a esses todos, a poesia é naturalmente valorizada pelas pessoas cultas, mas é valorizada dentro do seu espaço, quer dizer, não existe aquele deslumbramento à portuguesa: ai a poesia! O deslumbramento pode de facto ser simplesmente uma rima, mesmo quando é simplesmente uma rima de alguidar. Não, é uma outra atitude, totalmente diferente. Em Portugal ela não é de facto sobrevalorizada nem subvalorizada, existe, acho eu, pela minha experiência, uma atitude às vezes infantil em relação à poesia. Quer dizer também que isso significa que a poesia não é entendida como alguma coisa como outras, que faz parte da vida, não, aquilo é uma coisa assim à parte, mas não é. É uma coisa que faz parte da vida e que tem a sua manifestação só nalguns casos, como quase tudo o que existe.

JF: Arte literária e não literatura, não é? Porquê?

Bom, não, não é. A arte literária implica formas de poesia que saem um pouco daquela norma que até já não cabem no espaço da literatura, porque saem fora da palavra. Não é preciso chegar à poesia concreta exactamente, temos antes disso muita poesia. Na Antiguidade, na Grécia, há poesia com desenhos feita ela própria a desenhar uma árvore ou outros elementos, isto na Grécia Antiga, dois ou três séculos antes da nossa era. Depois na Idade Média também, a poesia religiosa tinha muitas vezes a forma de um altar, ou coisa semelhante, portanto aí é melhor falar da arte literária do que da literatura. Fora disso está muito bem, é literatura, é pintura, é ura, candura, frescura, etc. Mas poesia é poesia.

JF: “Ars Poetica”, de Archibald Macleish, é um dos seus poemas favoritos? Porquê?

Eu acho que este poema, como todos, deveria ser visto todo ele. É evidente que esses dois versos são os versos que encerram o poema e que têm a intenção total, portanto should not mean quer dizer não é um sítio para ir lá ver os significados, porque isso é uma transformação, e, se transforma, a poesia já não é poesia, deixa de o ser no momento em que transforma, em que explica. Tem de se impor como se impõe, por exemplo, uma árvore que nós não costumamos ver, olhamos para ela, e o melhor muitas vezes é não saber o nome da árvore, nem saber mais nada, simplesmente admirar a árvore que está ali. Desembarcamos em África, ou na Ásia, e vemos uma árvore que nunca vimos, uma coisa espantosa, e admiramos aquilo, como é que é possível na natureza haver uma forma destas com esta força, com tudo isto? Agora chama-se assim ou chama-se assado, já não é muito importante, ainda por cima normalmente chamar-se assim ou chamar-se assado está carregado de ideias pré-concebidas.

Excerto de “Ars Poetica”, de Archibald Macleish

A poem should be palpable and mute
As a globed fruit,

Dumb
As old medallions to the thumb,

Silent as the sleeve-worn stone
Of casement ledges where the moss has grown—

A poem should be wordless
As the flight of birds.

Archibald MacLeish, “Ars Poetica” from Collected Poems 1917-1982.
Copyright © 1985 by The Estate of Archibald MacLeish.

Ler aqui.

Não é preciso dizer mais nada, acho eu. Os primeiros dois versos começam logo: um poema deveria ser palpável, e mudo ou silencioso como um fruto redondo. Pois é, um fruto redondo é palpável, diz tudo, é essa a sua fala. Ele não foi feito para nós o comermos, foi feito para existir e depois servir a natureza de várias maneiras. E comer o fruto não poderia ser ler o poema e percebê-lo de algum modo? Não, comer o fruto é absorver o poema tão bem tão bem, que ele fica…

Jogos Florais: Interiorizado, decorado?

Não é decorado, lá está, isso não interessa, decorado é na escola, para recitar. Como a árvore, por exemplo, ver essa tal árvore, que nunca vimos, que é uma árvore de qualquer maneira estranha, nova, pela espessura toda, ou, pelo contrário, pela cor das folhas, das flores. Não é preciso descrevê-las, dizer ele viu uma árvore lindíssima, tem umas flores desta cor, mas isso não é nada, uma coisa é ver, outra ouvir. Aqui é isso mesmo, são uma série de imagens sobre essa natureza concreta do poema. O poema é como um fruto, um poema should be wordless, um poema não deveria, é difícil traduzir aqui wordless… “Não há palavras/como o voo das aves”.

J.F: Ser palavrosa?

Olhe, boa tradução, não devia ser palavrosa, não devia impor-se pelas palavras, tal e qual como o voo dos pássaros. O voo dos pássaros também não tem palavras, mas o voo dos pássaros pode ser impressionante em muitos casos. Impressionante pela velocidade, pelo facto de irem sós ou em grupo, quando vão em migração, isso tem um ritual que nos comunica muita coisa… Sem uma única palavra.

J.F: Como se ensina poesia? Como se fala sobre um poema? 

Como se ensina a poesia, não sei, cada um terá de saber por si. Mas ensina-se? Há coisas que se ensinam, a criança também tem de ser ensinada a falar, porque se ninguém a ensinar a falar nunca fala. Há naturalmente alunos, tanto aí como na matemática, como noutra coisa qualquer. Há uns que têm vocação, que têm dentro de si uma força que os faz entender mais facilmente e melhor do que outros. Agora, como cada um ensina, isso é uma questão de cada um, para mim não há nenhum modelo.

J.F: Para que serve a poesia? E a sua? 

A poesia não serve para nada a não ser para quem a faz, serve a quem a faz. Como muitas outras coisas que servem, quase tudo o que o ser humano faz em sociedade faz porque isso lhe traz qualquer vantagem, seja ela material ou não. A cozinheira do restaurante cozinha porque ganha dinheiro, e com esse dinheiro que ganha pode cozinhar para si, porque se não, não pode, cozinha porque sabe, aprendeu, e isso rende-lhe dinheiro. O poeta não é isso, poderá nalguns casos haver alguns que estão atrás de vantagens materiais ou de outro tipo, ou de prémios, ou seja do que for, mas isso aí de facto já não são para mim poetas. O poeta escreve por uma necessidade interior, por uma compulsão. Os religiosos são religiosos porque têm uma compulsão interior, não é por outra razão. A poesia serve ao poeta que tem essa compulsão, para satisfazer essa compulsão. Quase todos nós satisfazemos as nossas compulsões. Há alguns que têm compulsões muito triviais e pouco importantes, agora se tiver uma compulsão para matar, ou se tiver uma compulsão forte para subir ao Evereste, ou se tiver uma compulsão forte para coisas várias, é essa compulsão que o faz fazer isso, ninguém vai subir ao Evereste se não tiver a compulsão de andar pela montanha acima. Para mim serve para satisfazer a compulsão que o poeta tem. Porque é que o poeta tem essa compulsão? Certamente em grande parte é uma coisa que nasceu assim com ele, cada um de nós tem certos interesses na vida, é evidente, faz parte de cada um, do carácter, e depois porque houve certamente acontecimentos que o arrastaram para aí, acontecimentos que ele precisa de trabalhar, é uma forma de os trabalhar, escrever, e escrever daquela maneira.

J.F: Será que certos períodos políticos exigem um determinado tipo de poesia?

Não, a pergunta está muito mal feita. Primeiro, não há exactamente períodos políticos, há períodos sociais, período social é uma coisa muito mais larga. Por exemplo, em democracia, há o período social da governação do PSD, há o período social da governação do PS, e claro que a poesia não muda nada e claro que cada um deles pode provocar um período social diferente, pode haver convulsões sociais, pode haver greves, pode haver muita coisa ou não haver. Os períodos sociais não exigem nada, provocam um certo tipo de manifestações, seja nas artes, seja noutras actividades, e provocam poesia também que se ocupa desses períodos sociais. Pode ocupar-se mais ou menos, isso já depende do estilo e do registo do poeta, que também, por natureza, pode preocupar-se muito ou não se preocupar nada com o problema social, pode preocupar-se só com os seus sentimentos, saber se a amada ou o amado estão ali ou se foram embora, etc… E, portanto, não se interessa nada, não lhe interessa se é isso ou aquilo a política, ou, pelo contrário, sente muito todo o ambiente social. Claro, se é um poder que luta contra todos e cada um, todos e cada um têm de lutar contra ele, por todos os meios e, se é todos, é também a poesia, claro.

J.F: Usa a poesia no dia-a-dia? 

Não sei o que é usar poesia. Se vou ler, não diria nunca usar. Apetece-me ler um certo poeta, porque já sei o que ele diz, e eu quero mais uma vez ouvir aquilo, é como quem ouve uma música. No tempo dos Beatles ouvir os Beatles de manhã à noite, e agora ouvir o punk ou Bach, há quem oiça Bach de manhã à noite, também em Portugal.

J.F: Lembra-se de versos com regularidade? Sabe versos de cor? 

Então não me haveria de lembrar? Que pergunta um bocadinho ofensiva! De cor? “É numa rua bizarra a casa da Mariquinhas, tem na sala uma guitarra, janelas com tabuinhas…” Guitarra em vez de piano, só isto!…

J.F: Como se imagina num verbete de uma enciclopédia literária? Que gostaria de ler sobre si? 

Não me interessa, é um assunto que não me interessa, de mim já se disse tão pouca coisa, podem continuar a dizer, seja o que for, também que eu mato e roubo. Isso é um bocado chato, mas é assim.

J.F: Quando o googlamos, o seu nome aparece associado a Ana Hatherly, António Aragão, Alexandre O’Neill, Mário Cesariny e Herberto Helder. Faz sentido? Não gosta muito da internet, pois não?

Lembram-se do que era a PIDE? Claro que não. Metade da internet é a PIDE, o que um gajo faz aqui, uma coisa qualquer, imediatamente o mundo inteiro está a saber, eu não quero, sempre quis ter a minha… Não gosto da palavra privacidade, que não me invadissem quando eu não quero. Eu sou muito sociável, mas também em certos momentos não sou.

Faz sentido, claro que faz, mais a alguns do que a outros: à Ana Hatherly, António Aragão e Melo e Castro, até fizemos um livro em conjunto, os quatro. É claro que ao Alexandre O’Neill, fomos amigos e frequentámo-nos, mas nunca fizemos, que eu me lembre, nada em conjunto. Já são estilos um bocado diferentes, eu também sou satírico, mas sou satírico de uma maneira diferente do Alexandre O’Neill, e não sou só satírico, e ele praticamente só é satírico, muito bom, não há nada nele que não tenha lá uma pontinha de sátira. Ao Mário Cesariny e Herberto Helder, como poetas que fizeram poesia que me parece ter muito interesse, mas só isso.

J.F: Refira uma embirração linguística e/ou poética (palavra, construção, etc). 

Expectável!!!!!!!

J.F: Que perguntaria a outro poeta?

Nada! O que é que eu havia de perguntar? Eu convivi com muitos poetas e nunca lhes perguntei nada, nem eles me perguntaram nada sobre poesia, só sobre outros assuntos, outros assuntos que toda a gente que convive tem em comum e faz perguntas e dá respostas.

J.F: Temos uma secção sobre curiosidades literárias. Lembra-se de alguma que pudesse partilhar connosco?

Das Guerras do Alecrim e Manjerona, de António José da Silva, a fala de Semicúpio: “Neste mundo somos todos homens de ganhar; o que desautoriza é o modo!” É tão espantosamente actual, não é?

J.F: Poderia descrever-nos uma peça de vestuário com que sempre tenha sonhado e que nunca tenha tido?

Ao contrário do que acontece com grande parte das pessoas, que gostariam muito de ter uma peça de vestuário a imitar algum actor ou actriz, eu lembro-me de que tinha um gosto que satisfiz. Eu queria ter um colete de couro, que nunca vi em Portugal naquela altura e que encontrei na Alemanha e que usei muitas vezes. Há fotografias minhas com esse colete. A propósito da roupa, devem-se lembrar de que, depois do pecado, Adão e Eva reconhecem que estão nus, porque não sabiam, era natural como os gatos. Algum gato acha estranho estar nu? Ou um cão? Ou uma tartaruga?

J.F:  Há pessoas que vestem os animais… 

Eu sei, a perversão pode dar essas voltas, não é exactamente por vergonha mas é para os alindar. Os primeiros habitantes das cavernas, meios macacos ainda, não usavam roupa, e começaram a usar talvez quando emigraram para o norte e tiveram frio, ou também pode ter sido por pudor, ou é cultural ou é natural. A roupa chegou aos vários excessos, a partir do século XVII/XVIII, naqueles vestidos que arrastam quilómetros, que tem de ir uma data de lacaios a segurar. E, naturalmente, como é um negócio também, esses negociantes de roupa, os criadores, criam para haver quem compre, porque, sendo tudo igual, já toda a gente tem aquilo e ninguém se interessa, a moda vai sendo feita com esse interesse, e há pessoas que seguem esse interesse e têm de seguir a moda: desde ontem usa-se assim! Então tem de ser. Aqui há meia dúzia de anos eram as calças rotas nos joelhos. Mas então porque é que as mulheres teimam em vestir-se de maneira diferente dos homens? Isso são elas, não são obrigadas, elas é que querem vestir-se de maneira diferente, nenhuma mulher se veste como um homem. E até já há uma Comissão para a Igualdade… E então o bicho pode ser vestido a condizer com a dona… é de se lhe tirar o chapéu e se calhar o resto.

J.F: Ou é o homem que não se veste como uma mulher?

Mas porque é que o homem se havia de vestir como uma mulher, se a roupa dele é simples, normalmente é o mais fácil, umas calças e uma camisa e está a andar? As mulheres não resistem a essa diferença. Alguns homens também não resistem a marcar a diferença, como, deixando crescer a barba, é estar a dizer: eu sou homem. O bigode e assim já são umas variedades que remetem ou para um hábito cultural de uma região ou de uma época. O Dali foi aquele que transformou o bigode num fenómeno artístico, em arte pura. Um fenómeno, mas é preciso tê-lo!

J.F: Quem é que gostaria que o representasse num filme sobre si?

Ninguém. Eu não gostaria de filme nenhum sobre mim, porque de certeza qualquer filme sobre mim ou sobre outra pessoa qualquer é mais um filme sobre a interpretação que o autor do filme faz daquela pessoa, por isso não tenho interesse nenhum.

J.F: O que é ser um filho da puta?

Eu escrevi um livro relativamente longo sobre isso. Esse livro está traduzido em espanhol, italiano e em francês, em que o termo é equivalente. Em alemão, tendo em atenção a minha relação com a Alemanha, já duas ou três pessoas me propuseram traduzir e mandaram até duas ou três páginas, e está muito bem traduzido, mas simplesmente não há nenhum termo para “filho da puta”. Ou melhor, há maneiras de insultar as pessoas, mas não servem, porque “filho da puta” em português é tão universal, especial, que se pode chamar “filho da puta” a um objecto: filho da puta da cadeira que me fez cair! Filho da puta da faca! “Filho da puta” tem um alcance semântico que me permitiu fazer aquele livro, que é mais uma divagação filosófica do que outra coisa. O que é “filho da puta”? Só posso dizer para lerem o livro e talvez fiquem a saber.

J.F: Portugal ou Alemanha?

Eu fui para a Alemanha tinha vinte e três anos, vim da Alemanha no ano em que fiz quarenta, é a parte principal de uma vida, entre os vinte e três e os quarenta. Passei na Alemanha a parte principal da minha vida, é natural que tenha relações de língua, de hábitos, de costumes, muito fortes. Quando voltei a Portugal não foi fácil, tanto mais que eu vinha com uma ilusão muito grande, a seguir ao 25 de Abril, e não contava vir encontrar aquela balbúrdia; e depois disso encontrar outra vez o que fazia parte da minha adolescência, esta sórdida monotonia portuguesa em tudo, desde a política até ao dia-a-dia, é uma monotonia, uma falta de força de viver e de energia. Neste país a falta de energia… De vez em quando há alguém na política que levanta a voz, mas é um levantar de voz retórico, oratório, não levanta lá dentro nada. Não sei, não percebo lá muito bem este país. Até linguisticamente, se compararmos o espanhol com o português, vemos a diferença que há, na estrutura. As duas línguas não só têm origem comum, como os dois espaços no início tinham tanta afinidade que a gente sabe que houve a união, e agora os espanhóis têm aquela energia ao falar… Os portugueses não só não têm energia como a própria estrutura do português remete sempre para eufemismos, para formas de delicadeza. Aquela história, que eu acho que já contei, da portuguesa que chegou, aterrou em Madrid, foi ao bar e pediu um café e disse: por favor, queria um café. E o empregado perguntou-lhe: “querías o quieres?” Está tudo dito. E nós chamamos a isso “delicadeza”, mas não é delicadeza, é uma maneira de ser, a delicadeza é outra coisa.

Portanto, Portugal ou Alemanha? Olhem, a minha maneira de ser foi sempre, e é, viver muito no presente, sem me preocupar muito nem com o passado nem com o futuro, sou assim, e portanto eu vivi na Alemanha muito bem. Vivi muito bem, mas havia uma inquietação qualquer, que eu não sei descrever. Talvez nós não possamos esquecer totalmente, embora… Eu ensinava português e literatura portuguesa, em casa falava português, não falava alemão. Na Universidade, falava italiano com o meu colega de gabinete, que era  italiano, porque ele não queria falar alemão. E eu fui muitas vezes a Itália. Quando estava na Alemanha, não podia vir a Portugal, por razões de incumprimento do serviço militar e para o fim fiquei sem passaporte, mesmo. E foi assim um bocadinho… Eu fiz uma festa quando fiquei sem passaporte (estou livre! estou livre!), mas de facto a coisa começa depois a pesar, porque sim… As saídas todas para a França e para a Itália acabaram, sem passaporte não davam.

No entanto, de ambos os países eu tenho lembranças e impressões boas e más, nenhum deles é só mau ou só bom. O espanto na Alemanha é o teatro, o teatro alemão é uma coisa de tirar a respiração, nos grandes teatros. Não na cidade onde eu estive, que foi a única cidade que não foi bombardeada, porque os americanos tencionavam fazer lá já o quartel-general. A dez quilómetros da minha cidade, havia uma cidade industrial, que foi muito afectada pela guerra, mas já estava construído um grande teatro, com a casa grande e a casa pequena. E de vez em quando eles abriam o fundo e ficavam com um palco com 30 metros. Incrível! Há coisas tão diferentes na minha cabeça, na minha experiência, mas eu continuo com aquela minha tendência para viver o momento presente… A Alemanha desapareceu praticamente da minha cabeça, tirando assim o interesse por alguns poetas, mas renasceu recentemente há um mês ou dois, porque, por acaso, aquele deus grego chamado kairós, que é o deus dos momentos, aqueles momentos que passam e que acontecem, e que a gente agarra ou não agarra, eu estava sentado num banco do Campo Santana, que fica em frente ao Instituto Alemão, e havia uma senhora, que estava a uma certa distância, a tomar café, que de vez em quando olhava para mim, com alguma insistência. Depois a senhora levantou-se e ao passar por mim disse: É Alberto Pimenta? E eu disse: “sou, como quem diz, que remédio, não é?” E ela disse: “ai, eu fui sua aluna há 40 anos na Alemanha”. E eu agora tenho tido contacto com ela e  com uma outra, também minha aluna. Eram professoras no Instituto, agora já se reformaram. Então, de repente, a Alemanha toda voltou à minha cabeça através delas, porque não foi um ano nem dois, foram 16 ou 17.

J.F: Como é viver na Mouraria?

Já não há Mouraria, isso já acabou. Agora está uma parte nas mãos dos indianos e dos chineses, já há uns 6 ou 7 anos, outra parte destinada a alojamento local. Estou nesta casa desde 2000, não era assim tanto. Aqui em frente, o jardim particular de um palacete foi todo abaixo para fazer apartamentos para turistas e mais um hotel. Isto mudou bastante nesta zona, tirando esta casa, porque nos três andares vivem os proprietários.

J.F: Beijo ou beijinho?

Uma das marcas da hipocrisia portuguesa é o uso do termo beijinho, que se dá à despedida. Lá está, há uma igualdade de géneros, mas se for despedir-me de um amigo com dois beijinhos é esquisito para a maior parte das pessoas. Penso sempre naquelas senhoras queques que não encostam os lábios sequer, encostam a cara, a dizer: um beijinho, vá! É assim como quem diz, nós somos muito amigas, um beijinho. Mas são beijos simplesmente, não são beijos eróticos, e é isso que a hipocrisia portuguesa quer marcar, atenção não são eróticos. Para mim é hipocrisia, não dá. Porque um beijo na testa, um beijo na mão, é um beijo. Um beijo no rosto é um beijo, pronto.

Publicado in Jogos Florais

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