A lista de livros que publicou é extensa e parece que Zombo (Edições do Saguão) poderá ser o último que escreve. É o que diz Alberto Pimenta, o poeta irreverente que deu nas vistas quando o diretor do Jardim Zoológico de Lisboa o autorizou a entrar numa jaula e protagonizou uma performance pouco habitual no Portugal daquela altura e inspirada no poema A Pantera de Rilke.

Texto de João Céu e Silva e Foto de Orlando Almeida

Nasce na cidade do Porto em 1937. A cidade e a data identificam-no o suficiente ou foi um mero acaso?
Acho que sim, ambas me marcam. Nasci quase no fim do ano e antes da II Guerra Mundial, portanto vivi a guerra toda e houve uma série de repercussões e de efeitos colaterais, como se costuma dizer, que me divertiam. Desde o racionamento até às sirenes de alarme, estas com uma violência que nunca mais ouvi, além de nessa altura ser preciso pôr fita-cola de várias cores nas janelas por causa dos eventuais estilhaços. Era uma tarefa que fazia com a minha mãe porque o meu pai era militar e estava nos Açores, que era um lugar privilegiado porque podia acontecer qualquer coisa por lá e ele fazia um relato constante do que por lá ia vivendo. Aquilo para mim foi um divertimento, mesmo que o racionamento não o fosse, mas naquela idade ainda tinha pouco significado. Nascer no começo da guerra, viver esses eventos e ser na cidade do Porto deixa algumas marcas. Eu não falo à maneira do Porto, nunca falei nem os meus pais, antes numa maneira neutra qualquer. Saí de lá para ir para Coimbra estudar em 1952, aos 15 anos, e foi um tempo em que deu para fazer muita coisa com os compinchas, como uns passeios até Leixões, ver os barcos e falar com os marinheiros com o pretexto de treinar o inglês e também fazer um pequeno contrabando com eles de vinho do Porto em troca de cigarros. Devo ter as marcas também de ter vivido esse tempo numa rua do Porto que só tem casas de um lado e do outro um muro enorme de um cemitério monumental, desativado e onde está o Camilo e outros nomes numa série de cruzes muito bonitas. Muitas vezes, com 9 ou 10 anos, eu ia lá para dentro e do muro olhava para o interior da minha casa e era interessantíssimo ver a minha mãe e outras pessoas na sua vida. A minha infância foi, como todas, marcada pelo ambiente e lembro-me bem da rua do lado, que se chama Rua do Paraíso, onde estavam as lojas todas. O carvoeiro, o merceeiro, que era um homem muito divertido e punha na montra um prato de ovos grandes e um outro com ovos pequenos; nos grandes um letreiro dizia “ovos de galinha casada” e nos outros “ovos de galinha solteira”. Havia outros acontecimentos, como de vez em quando um gato que subia a uma árvore e a rua inteira mobilizava-se ou quando vinha a “rede”, que era a camioneta do canil, que de repente estendia uma rede de um lado ao outro da rua e apanhava gatos e cães vadios e toda a gente se metia no meio porque queria safar os cães e gatos e era uma grande confusão. Estava-se numa zona de fronteira entre o popular e o médio, portanto posso dizer que nesse sentido marcou-me.

Saltamos 40 anos e é o momento em que publica o seu livro famoso, Discurso do Filho-da-Puta. É outra identificação?
Sim, sem dúvida. É um livro que sai no fim do ano de 1977 mas estava pronto em setembro, depois de ter regressado ao país. É um dos raros livros que escrevi em prosa, embora seja uma prosa poética pelas repetições estilísticas. Eu estava regressado a Portugal após ter passado 15 anos na Alemanha, um regresso com bastantes peripécias porque fui o que se chamava na altura refratário – não fui fazer o serviço militar -, e isso acarretou-me variadíssimos problemas, inclusive o terem-me negado prorrogar o passaporte. Para entreter e ganhar algum tempo houve um amigo que me sugeriu ‘porque não pedes a naturalização e ganhas tempo’. Foi o que fiz, porque tinha essas condições todas, então pedi a naturalização, o problema foi que veio dois anos depois mas dois dias antes do 25 de Abril.

Tarde de mais?
Criou-me, talvez, o problema mais grave da minha vida. Caí de cama e estive uns meses num alheamento qualquer porque naquela altura dos primeiros tempos da Revolução também nada era claro – nunca o foi depois também, embora tenha clareado um pouco uma geração sonolenta.

Antes do lançamento fez aquela performance…
… Sim, um happening chamado Homo sapiens, que me custou o lugar para o qual tinha sido convidado na Universidade do Porto porque houve alguém que disse que um tipo que se mete numa jaula no Jardim Zoológico, por razões curriculares, não pode celebrar um contrato para dar aulas. Fiquei oito anos desempregado.

Porque decide fazer o happening?
Há muito tempo que tinha isso na cabeça. Sempre me interessei por performances, coisa que na Alemanha se fazia bastante, e vinha essa ideia de me fechar numa jaula do Jardim Zoológico para se pensar no que é enjaular os animais. Recordava aquele poema belíssimo de Rilke, A Pantera, em que o animal anda de um lado para o outro e só vê grades. No entanto, na Alemanha não podia fazê-lo por duas razões: vivia numa cidade pequena, universitária, tipo Coimbra, que tinha um pequeno jardim zoológico, mas era ridículo fazer lá isso – e seria duvidoso que me permitissem – porque o significado seria outro: o emigrante. Não funcionava, só em Portugal. Cheguei em março e foi logo no início de junho, após receber autorização do diretor, um senhor de muita idade, admirável, daqueles que eram colocados a seguir ao 25 de Abril a ocupar aqueles lugares por algum tempo.

Já vinha com essa fisgada!
Sim, já tinha essa intenção há muito tempo, e felizmente tive a sorte de haver um responsável que autorizou.

E, pouco mais de 40 anos depois dessa performance, lança o seu mais recente livro…
O Zombo… Que tem uma capa onde há um espelho com uma duplicidade entre dois acrobatas e uma mosca – esta foi o meu contributo para a capa. Tem de haver aqui mais uma impertinência, disse para mim, e no interior a mosca volta a aparecer. Depois de o livro sair, o meu amigo Pádua Fernandes, poeta e ensaísta brasileiro, pôs no seu blogue uma fotografia em que estou numa performance feita em Itália ao lado de outra com todos os meus livros. Quando vi a imagem, disse: será que fiz alguma coisa na vida além de escrever? São muitos, de facto. Curiosamente, ele diz que “os últimos livros trazem todos uma espécie de sugestão de que são o último”… Embora todos os livros tenham mudanças de estilo e de tema bastante fortes, porque para mim é impossível ficar só na análise factual e não entrar no tempo e nas circunstâncias que me levam a criar outros temas e estilos, todos os livros trazem uma mudança. Este traz uma muito maior, talvez seja de facto a definitiva, porque estes livros são só a passagem do tempo de uma ponta à outra e de várias maneiras e circunstâncias, em várias atitudes ridículas ou num trágico nunca acentuado. Zombo porquê? Está logo na perífrase inicial: “A existência deste universo é mesmo esse enigma do tempo o tempo que vai desgastando corroendo e eu zombo apesar de o reconhecer cheguei àquele ponto em que acabou, não entro em mais jogo nenhum.” Não sei, estou a dizer isto e às vezes posso ser surpreendido. Mas a disposição não é essa.

No início regista que “isto está sempre a prometer o começo. Verdadeiramente ainda não começou”. A que se refere com estas linhas?
Tem que ver com o país. Dizer que ainda não começou é dizer que isto continua a ser uma espécie de projeto de há não sei quantos séculos e, quando se fala do que os portugueses fizeram e o que descobriram, tudo isso tem apenas um ar de desejo. Todos os outros na Europa agem e Portugal não age, aqui a palavra é muito mais importante do que o ato. No outro dia era a história das golas inflamáveis, agora é outra coisa qualquer…

Entretemo-nos com a vidinha?
É isso, entretemo-nos com as palavras. Esse poema termina com Al Medina, onde está a casa do presidente da câmara… A poesia distingue-se da prosa, acho, por duas ou três razões, mas há uma razão muito mais importante: os discursos organizados não são poesia, a ciência, a filosofia, a religião ou o discurso jurídico querem todos chegar à verdade por processos diferentes. A poesia nunca quer chegar à verdade, parece que tem consciência do enigma de fora e de dentro e fica a elaborá-lo e a ver até onde as palavras juntas umas às outras podem dar a perceber que o enigma foi compreendido. O enigma está sempre à espera da certeza, seja qual for.

O poeta deste livro irrita-se!
Irrita-se, claro, é impossível não acontecer isso. Este sistema criado pelo ser humano passou o prazo de validade e já acabou. Dá a ideia de que os homens que mandam neste mundo, além de quererem enriquecer e possuir cada vez mais poder de qualquer espécie, já estão dementes. Talvez eu também o esteja, mas pelo menos reconheço, enquanto os outros que estão no mesmo barco não. Porque só a demência geral é que poderia levar a estas atitudes que observamos e são em parte grotescas e em parte perigosas.

Essa não tem sido uma constante na sua vida?
É mais agora. Como digo na frase inicial: “Por isso zombo.” Por exemplo, estraguei o meu ombro e não é uma desgraça, antes um acontecimento; é a passagem do tempo, é a consciência muito aguda de que o tempo está a chegar ao fim e, embora seja tudo grotesco, isto era um palco. Foi sempre um espetáculo. Agora, está a tornar-se incómodo de mais e, talvez, também o facto de estar aqui nesta prisão de luxo [em casa] contribua.

De qualquer modo, este não será o último livro, vai continuar a zombar?
Não sei, é uma pergunta a que sinceramente não posso responder. É possível que seja o último, é possível que haja uma surpresa. Têm existido tantas na minha vida, pois de repente qualquer coisa que mude e com que eu não contava pode acontecer. A poesia, para usar uma imagem dos nossos dias, é como uma ficha que se liga e surge a compulsão de a fazer. Não a prosa, porque esta já está feita e organizada, só a poesia é que nunca está – é justamente a organização das palavras. A ficha sai e acabou. Durou um dia ou um mês ou um ano.

Pelo que se lê em Zombo, não irá nunca fazer belos sonetos?
Nunca fiz, muito menos agora. Há esses errântico e drolântico.

No último dos sete panflatos vai buscar a palavra “selfie” a propósito do Presidente da República. Que agora é uma palavra portuguesíssima e com a qual brinca ao juntá-la com a “alheira de Mirandela”, com “um dente de alho” ou “com vaca mirandesa”. Continua a ser uma performance?
É, sim, uma performance delineada por palavras. Agora, esse último panflato vai contra várias correntes, até contra uma corrente do meu pensamento, porque opõe a tourada ao abate num matadouro, que é uma barbaridade, enquanto a tourada é um jogo. Quando digo no poema o que se faz ao bicho nas touradas, e então o que acontece todos os dias no matadouro? Naturalmente, a visita dos bois ao presidente é um pretexto para o último verso: “Ficaram a olhar como bois para o palácio.” São os flatos, não são os panfletos.

É uma edição de 750 exemplares. Irão bater às portas certas? Porque não faz como os outros e esconde o número?
Isso nunca se sabe, mas pode ser que até através desta conversa possam chegar a uma porta certa. O meu livro anterior, Pensar depois no Caminho, também teve 750 exemplares e está praticamente esgotado. Ou seja, um ano bastou. A poesia tem poucos leitores e esta geração tem a sua verdade no Google, que se permite publicar poemas alterando títulos e tudo o mais que lhe apetecer. Aquela verdade do Google é a verdade e esta geração está tão presa às verdades, sejam elas fake ou não fake, que tanto faz. Precisa de verdades, porque a dúvida exige reflexão e isso não apetece. Até convém que seja assim por parte de quem manda e de quem obedece, desde que a barriga esteja satisfeitinha e que haja um carro ou uma mota – é o importante nos tempos que correm. Mais de 750 exemplares em poesia só para aqueles poetas que alcançaram uma moda qualquer, em que é bonito ter na estante um livro deles. Não é o meu caso.

Acha que há muitos poetas que vão estando na “moda”?
O Herberto Helder esteve sempre – desde há uns 30 anos – e abaixo dele há uns poucos que nem são lidos como gostariam, como é o caso do Cesariny. Autores que é bonito tê-los na estante para evitar que digam “então, não tens este?”

Os seus livros também não estão ocasionalmente na “moda”?
O Discurso [do Filho-da-Puta] esteve, com muitas edições, vendeu bastante e foi traduzido em três línguas. É prosa, claro, e com um título de que muita gente diz, depois de ler, “porra, não era isto que eu esperava, não era nada disto”, porque tem um rodar em volta de uma ética e não é nenhuma exclamação de violência que resolva. Esse, sim, no entanto as editoras em que publiquei foram fechando. Enquanto foi vivo, o Vítor Silva Tavares, na &ETC, não gostava de fazer muitos exemplares e tinha os seus leitores, de maneira que se esses 750 chegarem aos certos e se tiverem disponibilidade para entrar nesses enigmas todos que a poesia foi desde o início, como na Ilíada, e sempre com uma atitude não de resolver mas de querer encontrar formas novas de acordo com o próprio sentimento e pensamento e de transmitir esse clima exterior e interior do universo e do nosso universo.

Tem paciência para ler os seus colegas poetas?
Eu estou a ver muito mal e leio pouco… Esta casa está cheia de livros mas o problema é se a letra é muito pequena. Os alemães, por exemplo, usam uma letra muito miúda e eu só os leio com lupa. Às vezes, para rememorar um clássico, por exemplo o Goethe, que são cinco volumes, é muito difícil. Na prosa ainda é pior, só com muito bons olhos. Para citar num ensaio a primeira frase da Teoria Estética do Adorno gastei um mês. Sei que eram 12 linhas de um alemão muito pensado. Nós não temos nada comparado em termos filosóficos, nenhum pensador que se exprima com aquela profundidade.

Há um vazio a percorrer este país?
Sempre houve um certo vazio. É como a água que de vez em quando assoma ou quando saltam peixes no mar – sempre saltaram poucos. Camões é, de facto, dentro da estrutura poética da época, um colosso infinitamente melhor do que Petrarca, porque este repete-se. Mas este é o país que deixou na miséria e na doença morrer um homem desses e agora em paga fazem o Prémio Camões – essas coisas muito portuguesas. O Fernando Pessoa só foi descoberto realmente quando um alemão o traduziu. Um alemão!

Pessoa acabará por deixar Camões esquecido?
Camões tem de ser lido com conhecimento da poética da época. Mas há outros grandes poetas, como a Antero [de Quental]… Aliás, suicidaram-se todos, cada um de sua maneira: Pessoa suicidou-se com o absinto e essas coisas, Antero de outra maneira. Filósofos, cientistas e padres não se suicidam, já os poetas suicidam-se muito porque andam à procura de uma verdade que não surge do nada. Já encontrei, é isto, dizem e serve-lhes. O poeta nunca está sossegado.

Isso nunca lhe passou pela cabeça?
Não, não passou. Aliás, no primeiro poema deste livro digo: “Estou exausto deste serviço, mais não. não me peçam, despeçam-me.” Eu não digo que me despeço, despeçam-me. Não, não me passou pela cabeça, nem naquelas épocas da adolescência em que essas coisas passam pela cabeça, nem mais tarde quando tive alguns problemas, todos ligados a essa história do serviço militar. Recordo, neste último caso, que já depois do 25 de Abril deram uma licença especial a refratários para virem no fim do ano passarem as férias de Natal e eu vim. Fui apresentar-me à inspeção, tinha 39 anos e estava mais gordo do que estou agora – porque não saio aqui de casa agora – porque tinha estado doente e fui apurado para o serviço militar. Deram-me um papel para me apresentar nas Caldas da Rainha e eu apresentei-me no aeroporto. Foi a segunda vez que fugi. Há uma circunstância divertida e grotesca nessa história, uma conquista de Abril: a primeira inspeção que fiz foi em 1957, quando fiz 20 anos, e fiquei nu integralmente; a inspeção após a Revolução foi de cuecas.

Como começa um poema. De forma igual ou diferente de há uns anos?
Só posso dizer que não há uma evolução em que eu possa dizer foi assim, até porque quase cada livro é um caso diferente. Estou com a ficha desligada agora, mas de repente a ficha ligava – já não o espero, mas pode acontecer – e aparecem cinco ou seis versos muito interessantes e há qualquer perceção de que a ficha continua ligada, bem como amanhã e depois. O livro anterior tem quase 200 páginas e estava de tal maneira que me levantava entre as seis e as sete, tomava um café, almoçava em casa uma coisa de nada, passava o tempo sentado até às duas da manhã. Claro que fui ter ao hospital por três semanas, que não me fizeram bem. Não se pode trabalhar assim, nem aos 20 anos, quanto mais agora. A obcecação com que eu estava! Este já não foi assim, mas com muita lentidão, e uma das complicações foi encontrar a ordem. Porque eles têm que ver uns com os outros e levou bastante tempo a organizar. Às vezes, há casos em que sai pronto e outros em que não é o que se quer e é preciso corrigir. Foi o caso deste.

Quando organiza quer que os poemas dialoguem ou que seja o leitor a dialogar com eles?
Ambas as coisas, mas se os poemas dialogarem uns com os outros o leitor também dialoga.

Quando diz que as gralhas são da conta do leitor…
… Estou a zombar, porque escapa sempre qualquer coisa. Em alemão, gralha à letra chama-se ‘diabo da imprensa’ – é um diabinho que se mete lá.

Tem um poema em que brinca com Buñuel e o filme Discreto Charme da Burguesia. Como lhe surgem essas interferências?
Na altura, caiu, porque se estava a falar em defecar e no Discreto Charme da Burguesia eles estão à mesa não em cadeiras mas em retretes. Numa das cenas, vem a empregada com uma bandeja com papel higiénico! Surgiu, porque é daquelas cenas de uma força muito grande.

No poema “Doces Musas” diverte-se com as três letras de sms. Não está a piscar o olho aos jovens?
Não estou a pensar nesses termos, de jovens.

Já deu para esse peditório?
Não sei se era para esse ou para outro. A poesia que eu fiz até hoje não está direcionada para um ou outro leitor, é um fruto das circunstâncias. É mais a circunstância da minha vida que orienta a feitura da poesia. A escolha dos temas e a maneira de os tratar é fruto da disposição. Claro que neste momento estou com uma disposição muito diferente do que noutras alturas.

Já usou mais o escárnio nos seus poemas do que hoje em dia?
Em certas épocas, sim, mas nem sempre. Nalguns poemas e épocas, sim, noutras não. Tenho um livro de 1977 que foi escrito na Alemanha. Chama-se Ascensão de Dez Gostos à Boca e está dividido em capítulos: gosto disto, daquilo, do narrar, de poetar… [lê um poema]

Costuma ler os seus poemas em voz alta?
Não é costume, só depois. Cada um deles pede uma gravidade e um tom.

Seria capaz de fazer uma nova compilação como a Obra quase Incompleta, em 1990?
Depende se me propuserem essa tarefa e da liberdade de escolha – que teria de ser grande. A liberdade para esse tipo de coletâneas é cada vez mais pequena e depois cada editora tem uma orientação. Depois de morrer façam o que quiserem e quem quiser, mas em vida uma recolha tem de obedecer a uma ideia de conjunto. Neste momento, seria muito complicado porque são muitos livros. Teria de ter balizas e metas, senão ficaria uma coisa descomunal ou microcéfala. A da Obra quase Incompleta foi um momento de grande inspiração que veio logo do achado do título. Quando me trouxeram o livro houve uma colega que viu o título e disse “ah, isso é um erro de gramática”. Não, não é, porque obra completa faz-se só depois da morte. Uma obra antes da morte é fatalmente incompleta, além disso não está tudo feito, ou seja, é duplamente incompleta. Daí o quase incompleta.

O título é muito importante para si?
Bastante. O título tem de ter qualquer espécie de razão de ser ligada ao livro e tenho-o conseguido quase sempre. Haverá dois ou três casos em que não fiquei muito contente. Houve um, Indulgência Plenária, que era para se chamar Casta Diva, e já estava na tipografia quando saiu num jornal que falava também de uma “diva” e, felizmente, ainda houve tempo de mudar. Que, de resto, é mais amplo do que a ária da Norma que se aplicava um pouco naquele caso. A ficha ligou-me de uma forma curiosa, porque ela – Gisberta – foi assassinada em 2006 e eu, num desses dias era verão de muito calor, saio do restaurante e sentei-me na esplanada a ler o jornal. Abri-o ao acaso como faço muitas vezes e tinha a notícia do assassinato dela. Umas 15 ou 20 linhas apenas. Aquilo deu-me como uma pancada de martelo na cabeça; fechei o jornal e disse: vou escrever um poema sobre isto. Levei seis meses a encontrar um modo de começar porque era eu que estava a fazer um poema à Gisberta, assassinada no Porto, mas não podia fazer o poema lá porque seria do tipo descritivo ou uma notícia e não era isso que queria. Não a podia ver no Porto ou a conviver, tinha de achar um modo diferente. Ao fim de seis meses, calhou ser um encontro em Amesterdão e a partir daí nunca mais a vi. Há casos desses em que um acontecimento liga a ficha.

Há alguma palavra proibida para si entre os milhares que usou?
A palavra é escolhida simplesmente pela potência que tem e desencadeia ou numa circunstância vai provocar quem lê. Proibidas não existem, mas há algumas palavras que não imagino muito no meu poema, como aquelas mais baixas da esfera sexual. Não imagino que as pudesse usar! Só se desse qualquer convulsão. O que falo quando me refiro a essa esfera também não é com metáforas bonitas: as mãos entrançadas, pousadas enquanto a lua… Não, nada disso, porque a palavra em si orienta exatamente o modo de sentir e de ver tudo o que se está a falar. Há aí quem diga que “cagar é uma palavra que eles não conhecem, porque existe na maior parte dos poetas uma fuga a certo tipo de situações, como esta que uso muitas vezes porque defecar é um termo que não é bem científico, apenas parecido. O que é que fica? As metáforas que normalmente não se referem a um ato quotidiano e naturalíssimo. É como mijar e não fazer chichi ou fazer pipi. São maneiras de dizer qualquer coisa que não se pode dizer. É o caso da própria palavra “foder”, suponho que nunca a usei, porque cada palavra que se refere à relação sexual já tem um tipo de conotação e essa que eu disse tem uma logo negativa. Só querendo mesmo uma conotação negativa, mas é preciso ter consciência de que tem essa conotação para depois fazer a escolha de acordo com a atitude mental e sentimental que se pode ter.

Nunca lhe faltam temas para os poemas?
Nunca.

Publicado in Diário de Notícias

Partilha

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here