O PROCESSO de impeachment de Dilma Roussef, consumado por decisão de três quartos dos senadores em Brasília, foi marcado desde o seu início por antagonismos aparentemente irreconciliáveis. Para uns, este episódio constitui uma ameaça à democracia no Brasil; para outros, é uma prova da vitalidade das instituições do Estado brasileiro. Quanto à substância das acusações de crime de responsabilidade fiscal, a polémica persiste entre os que consideram ser uma decisão legítima do Senado e os que classificam esta decisão como um golpe de estado legitimado por uma votação formal sem prova cabal do conteúdo que a Constituição exige. Esta última posição é fundamentada no parecer emitido pelo Ministério Público, segundo o qual as pedaladas fiscais que constam do processo de acusação não configuram ilícito penal que criminalizem a ex-Presidente. O que parece reunir maior consenso é que estas acusações constituíram um pretexto para embasar juridicamente o descontentamento parlamentar que levou à decisão política do Senado. Agora que Michel Temer assumiu plenamente a Presidência, interessa saber as implicações desta ruptura, e quais suas consequências nas grandes linhas estratégicas que tem caracterizado o modelo de desenvolvimento económico brasileiro.
Como primeira hipótese, tudo indica que o terramoto que abalou o palácio do Planalto pariu um rato. Ou seja, apesar das evidentes diferenças ideológicas entre as lideranças do anterior governo e do atual, e do consequente retrocesso previsível em importantes conquistas sociais alcançadas nos últimos governos, o modelo extrativista brasileiro e seu programa aceleracionista prosseguirá a todo o vapor. Como escreveu Tomazi di Lampeduza no famoso Il Gattopardo “É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”. Discussões políticas recentes na América Latina justificam esta combinação entre instabilidade democrática e letargia política pelo que designam de “dilema de governabilidade”. No artigo A Galinha dos Ovos de Ouro de Temer digo que esta noção de governabilidade constitui uma tautologia, utilizada como instrumento de legitimação de interesses das elites fortemente representadas através dos partidos políticos. Podemos ainda acrescentar que para melhor compreender esta resistência à mudança dos mecanismos de produção económica e reprodução de capital, precisamos descrever as forças que movem estes mecanismos através de um conceito radicalmente diferente, que encontra a sua melhor tradução na noção de governamentalidade [1].
Para avançarmos neste argumento, podemos começar por rever a narrativa que marcou a ascensão e queda do governo de Dilma Roussef. A primeira questão que salta à vista, é que foi precisamente sob a égide do discurso da governabilidade que o seu governo se formou, em coligação com o partido de Michel Temer. Hoje sabemos o resultado: como dizia Leonel Brizola, quem convida o inimigo para jantar, corre o risco de ser comido à sobremesa. E foi isso precisamente que aconteceu. O que este caso revela, é que o dilema de governabilidade pode não só conduzir a impasses que esvaziam as possibilidades de atuação política, mas constitui uma ameaça latente no processo contínuo de luta pelo poder. E é também devido a estes impasses que certas pautas de reforma política são cronicamente marginalizadas, ultimamente classificadas como irrealistas e até indesejáveis pelo seu potencial de perigo que representam para a manutenção do governo. É notório que em países com uma raiz patrimonialista como o Brasil, estes impasses são fortemente influenciados por padrões de exploração de recursos naturais que são por sua vez progressivamente interiorizados no discurso político através de argumentos falaciosos, como parte indissociável de uma certa ideia de desenvolvimento e crescimento económico.
O conceito de governamentalidade, ajuda-nos a desmontar estas falácias, revelando as técnicas e procedimentos através dos quais a hegemonia das classes dominantes se produz, reproduz e transforma. A governamentalização destes procedimentos pelo Estado, ou seja, o modo como estas fomas de opressão se governamentalizam, foram descritas por Foucault como uma racionalidade e uma tecnologia política formada numa dada sociedade. Estes conceitos são particularmente úteis para explicar como os interesses específicos das elites são sedimentados, codificados e institucionalizados a partir dos campos de influência que determinam os jogos de poder. Temer parece compreender esse jogo político melhor do que ninguém, e os seus oponentes cometeram o grave erro de subestimar sua experiência nos meandros obscuros que o levaram ao Palácio do Planalto. A noção de governamentalidade permite desdobrar este jogo num plano mais amplo, de modo a perceber como micro-relações de poder se consubstanciam em arranjos políticos com os interesses dominantes, e como estes arranjos são progressivamente consolidados no aparelho burocrático e transformados em razão de estado para além do protagonismo momentâneo de cada actor político.
O debate politico entre defensores e oponentes do impeachment, tem sido polarizado entre a ênfase nas ineficiências de um governo despesista e corrupto, e a denúncia que estas críticas são apropriadas pelo discurso neoliberal de privação de serviços públicos, a despolitização de questões sociais, e a redução de ministérios e programas do governo. O centro do debate ideológico anda em torno da liberalização do mercado em oposição a um estado mais interventivo – entretanto, o problema crucial está no domínio de racionalidades capitalistas no coração do aparelho de estado, onde estruturas de influência organizada impõe agendas políticas ao serviço de interesses corporativos que visam o lucro em nome de imperativos de crescimento económico. Estes interesses, a avaliar pelas propostas de lei em curso e as movimentações políticas de Michel Temer, ganham agora novo ímpeto com a exportação de urânio e concessões de exploração de petróleo como moeda de troca para a obtenção de financiamento estrangeiro, entre outros contratos de exploração extrativa em curso para supostamente vencer a crise económica que assola o país. E aqui reside a possibilidade perigosa, de uma parte considerável do eleitorado vir a aplaudir a estratégia mercantilista que servirá de balão de oxigénio para este governo, ignorando suas consequências ambientalmente catastróficas no médio e longo prazo.
Se as eleições municipais que se seguem não justificam qualquer esperança excessiva de mudança do quadro atual, cabe aos brasileiros preparar alternativas credíveis a ser apresentadas nas próximas eleições presidenciais. A construção dessas alternativas pode seguir dois caminhos: ou a polarização ideológica entre facções políticas dominadas pela narrativa de crescimento económico como via sacra para o desenvolvimento; ou num movimento cosmopolita de cooperação e formação de alianças entre um amplo espectro de forças sociais que hoje se encontram dispersas, mas que partilham um espaço de luta pela transformação radical dos seus sistemas de produção e dos seus padrões de consumo. A questão que fica em aberto, é se essas forças sociais (no Brasil como no resto do mundo) serão capazes de promover a necessária articulação para que possam ter alguma possibilidade de sucesso.
Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta
[1] Governmentalité é um termo cunhado por Michel Foucault como parte do curso “Securité, Territoire, Population” em 1978 no College de France. Publicado em Foucault, M. 2007. Security, territory, population. Picador, Palgrave MacMillan, New York. Ver também Foucault, M. 1991 “Governmentality” em: Burchell, G., C. Gordon and P. Miller (Editores), The Foucault effect: Studies in governmentality. Hemel Hempstead: Harvester/Wheatsheaf, pp. 87-104. e Foucault, M. 2008, The birth of biopolitics. Picador, Palgrave Macmillan, New York.