ESTA é a história da portuguesa Margarida Santos Sousa que vai ser condecorada pelo Presidente da República no 10 de Junho, em Paris. Aos 57 anos, ela acolheu e socorreu em casa na noite de 13 de novembro dezenas de jovens feridos no atentado do Bataclan. Nascida em Penafiel, foi trabalhar aos 12 anos para o Porto e logo que arranjou uma oportunidade partiu para França. É porteira de um prédio com 27 famílias e todos os dias tem tarefas à parte: limpa casas, passa a ferro, multiplica o tempo sem parar. É uma mulher independente que gosta muito de dançar. Foi condecorada pela maire de Paris, Anne Hidalgo, com a medalha da cidade, e tem uma medalha idêntica da cidade de Penafiel.
O que faziam os seus pais quando a Margarida nasceu em Penafiel?
O meu pai trabalhava numa quinta, saía de manhã e vinha à noite, e a minha mãe fazia aquelas beirinhas douradas para pôr nas urnas, com um tear. Quando os meus avós faleceram, deixaram uma quintazita, e os meus pais tomaram conta. O meu pai era de Irivo [São Vicente de Irivo] e a minha mãe era de Galegos, os dois de Penafiel. Tiveram cinco filhos, quatro raparigas e um rapaz.
Como aconteceu a sua vinda para França?
Aos 12 anos e com a quarta classe, disse que não queria ir trabalhar nos campos, e o meu pai disse que não tinha de trabalhar para fora. Fui para o Porto como empregada doméstica.
Saiu de casa dos pais sozinha para o Porto?
Havia uma senhora que ia vender ovos e coelhos ao Porto, eu pedi-lhe para arranjar uma patroa. Fui para casa de uma patroa que tinha duas crianças deficientes e eu não gostava muito de estar lá, era uma prisão, os miúdos eram difíceis, ferravam-me, puxavam-me os cabelos. Coitadinhos.
A Margarida tinha 12 anos…
Eu era outra criança. Saltei para outra patroa, também no Porto, que tinha casa em Abragão, Penafiel, e às vezes íamos para lá, nas férias ou aos fins de semana.
Nunca ia a casa dos seus pais?
Às vezes ia vê-los, quando podia, de 15 em 15 dias ou uma vez por mês. Com essa senhora estive bastante tempo e ela teve três filhos de que me ocupei. Uma vez rebentou uma veia no nariz a uma das garotas, um problema muito grave, eu tinha 16 anos. Tomei a iniciativa de a levar para o hospital. Telefonei para os meus patrões, ela andava de bebé do terceiro filho, fui para a rua pedir uma boleia, um táxi, qualquer coisa para ir para o Hospital de Santo António, mas as pessoas recusavam-se porque viam a miúda com tanto sangue. Até que um jovem parou e perguntou se precisava de ajuda, não se importou de sujar o carro e levou-nos.
Nessa altura já a Margarida andava a socorrer as pessoas.
Sim, e os pais ficaram felizes porque consegui salvar a menina. No meu casamento ela falou nisso ao padre e ele contou a história. Eu tinha dito às minhas irmãs: se alguma chorar no dia do meu casamento, ides-me pagar caro, que eu depois dou uma chapada a cada uma. Afinal foi quem eu menos contava que me fez chorar. Depois trabalhei com uma florista e de seguida fui para uma patroa que tinha um neto em Paris, o cantor de ópera Jorge Chaminé, casado com a pianista Marie France Bouquet. Eles tiveram uma menina e precisavam de alguém. Eu já andava há tantos anos a querer fugir para a França e nunca houve ninguém que me trouxesse, cheguei mesmo a propor ao meu pai virmos os dois, mas a minha mãe disse não.
E de repente apareceu essa oportunidade?
Sim, a minha patroa disse-me “tens de me arranjar alguém para ir para França tomar conta da menina”. Oh, vou eu! Arranjei uma pessoa para ficar no meu lugar. Eles foram a Portugal e vim com eles de avião. Já estou cá há 36 anos. Para eles só trabalhei um ano porque depois foram para Espanha dar concertos. Ele perguntou-me se eu ia com eles. “Ai tanto trabalho que tive para vir para Paris e agora você quer que eu vá para a Espanha! Nem pensar.” E fiquei. Arranjei outro trabalho como empregada doméstica.
Eram franceses?
Praticamente trabalhei sempre com franceses. Trabalhei numa escola e num hotel mas não gostava, já tinha a minha filha e aquilo enervava-me porque ao fim de semana trabalhava. Então vim trabalhar para uma rua aqui atrás e conheci a senhora espanhola que estava aqui antes de mim. Quando se foi embora, fiquei com o lugar dela. Vai fazer 25 anos a 1 de julho que aqui estou.
Como aprendeu francês?
Eu só sabia dizer merci madame. Mas tinha a vantagem de estar com uma francesa e um português. Eu dizia em português e ele traduzia, eu deitava o ouvido para começar a compreender. Depois ela dizia em francês e ele dizia-me em português. E eu fui equilibrando. Puseram-me na Aliança Francesa, mas não dava para aprender muito porque o que se ensina mais é os verbos. Para mim os verbos eram um bocado complicados. Naquele primeiro ano aprendi bastante com eles, e em seguida… eu tinha força de vontade. Interesso-me por isto e por aquilo, sou curiosa, estava sempre a tentar. Quando vim para este prédio, vivia cá uma senhora que foi como uma segunda mãe, muito minha amiga. Chamava-me cocotte, quando eu falava um bocado mais de lado corrigia-me. E eu guardava. E fui começando, pouco a pouco, a ler e a escrever, não escrevo um francês correto mas já me desenrasco muito bem.
E em português?
Em português tudo bem, mas às vezes ainda me esqueço porque está sempre a mudar.
Vir para França era um sonho porquê? Porque via pessoas vir para cá?
Via pessoas mas não foi por causa disso. Senti sempre isso. Via a França num sonho, qualquer coisa de maravilhoso. Quando cheguei ao Aeroporto de Orly e viemos de carro, a meio do caminho disse: “Isto é que é a França? Isto é Paris? Afinal é como o Porto, só tem casas mais altas.” Fiquei um bocado dececionada, porque para mim eram jardins, não sei onde fui buscar esse sonho, era uma coisa maravilhosa. Mas nada me impediu de viver aqui. Se há portugueses que vieram porque precisavam de trabalhar, de viver melhor, eu não. Eu vim porque gostava de vir para França. Vou dizer sinceramente: o meu país ficará sempre o meu país no coração mas eu gosto muito da França. Nunca abandonarei Portugal mas se me dessem a escolher viver em França ou em Portugal eu escolhia a França.
Não está a pensar regressar quando se reformar?
Ah sim, mas não vou definitivamente. Ao princípio dizia que quando tivesse a reforma ia para Portugal, mas é um bocado delicado. Os meus pais já faleceram. Tenho os meus irmãos, cunhados e sobrinhos, toda a malta, mas a minha raiz está aqui, é a minha filha e o meu neto. O que é que eu vou fazer para Portugal quando a minha própria família está aqui? Aí decidi fazer o necessário para poder estar aqui sossegada, e como diz a minha filha, “vais, vens, passeias”. Nunca abandonarei Portugal mas também não abandonarei a França.
Pode ficar aqui no prédio, não tem de reformar-se?
Por vontade das pessoas, eu ficaria aqui. Mas acho que também temos de descansar a partir de uma certa idade. Estou com ideias de comprar um estúdio, para estar sossegada. A casa da minha filha tem a porta aberta mas quem casa quer casa e eu acho que a casinha deles é deles. Ela está sempre a dizer-me para ir, e a casa deles é grande, mas não, a vida deles é a deles e a minha é a minha.
É muito independente, já percebi. Gosta de viver sozinha?
Muito independente. Entendo-me muito bem com a minha filha e o meu genro, mas não quero estar no meio do casal. Tenho um apartamento em Ermesinde. Não vim para França só para passear, tentei organizar a minha vida. Quando ia a Portugal, ficava em casa da família. Mas é um bocado chato e pensei que queria estar naquilo que é meu. Comecei a fazer economias e pronto, lá tenho o meu apartamento. Quando vou, vou para a minha casa.
Este prédio onde trabalha parece sossegado.
As pessoas são sossegadas mas não é só essa a questão. Nós aqui dentro somos todos uma família. Eles já estão habituados comigo, eu habituada com eles. Aqui dentro eu não sou a porteira, nós falamos, rimo-nos, se houver um problema vêm falar com a gardienne, se tenho qualquer problema também falo diretamente com eles. Não é aquela coisa – esta é a porteira, fica aqui. Damo-nos todos bem.
Faz-me confusão aquele vidro, vê-se cá para dentro. Não fecha a cortina?
Está aberta nas horas de trabalho, fecho à noite. Não me estorva nada ter a porta assim porque as pessoas passam, fazem-me sinal com a mão, às vezes batem à porta para me dizer bom-dia. Claro que depois também tenho aquele momento de descanso em que as pessoas não vêm chatear-me, só se for mesmo um caso de urgência ou que se esqueçam de uma chave.
Que comida faz cá? Portuguesa? Francesa?
Tudo variado. Quando estamos entre portugueses fazemos português, quando estou com os franceses faço francês, misturo tudo.
Agora vamos falar dos dias terríveis. O bairro é sossegado mas está entre dois sítios onde houve atentados. De um lado o Charlie Hebdo, do outro o Bataclan. Apesar de tudo, no Charlie Hebdo foi mais longínquo.
No Charlie Hebdo não vi os tiroteios, apenas comecei a ouvir os bombeiros, a polícia, e achei estranho porque eram muitas sirenes ao mesmo tempo. E claro, com curiosidade, a Margarida vai até à porta para ver o que se estava a passar. Vi uma confusão enorme, policias a correr, os carros dos bombeiros e da polícia iam em sentido contrário e pensei: “Estão todos malucos ou quê?” Estava a falar com o meu vizinho que tem a loja de fechaduras. Uma vez por ano, como o Sena passa aqui em frente, por baixo, costumam fazer um treino de emergência. Pensámos que era isso. De repente, um polícia à civil que disse “entrem em casa, fechem as portas, não deixem sair ninguém porque houve um tiroteio e eles ainda andam todos na rua”. Ficámos pasmados. Começámos a ver na televisão que tinha havido um tiroteio no Charlie Hebdo. Horrível.
E depois estavam a recuperar a normalidade e aconteceu o Bataclan.
Quando estava tudo calmo, numa noite havia um concerto no Bataclan mas ninguém imaginava que ia tornar-se um horror. Infelizmente aconteceu.
Ouviu barulho?
Não ouvi barulho nenhum, estava a falar com a minha filha ao telefone. E disse-lhe que ia desligar porque ia dar a minha telenovela. Estava previsto um aniversário no prédio ao lado. Quando vi aquela juventude toda a chegar, a empurrarem-se uns aos outros, disse à minha filha: “Tiens tiens, vem aí uma banda, vão para o aniversário mas já vêm todos malucos, vão–me já ouvir. Espera que eu já lhes vou perguntar se eles pensam que a festa começa aqui.” Abri a porta e falei um bocado alto – “para onde é que vocês vão, pensam que isto é o quê?” – e começaram a dizer “ajude-nos porque houve um tiroteio no Bataclan e temos de esconder-nos”.
E reagiu logo?
Fiquei sem fala, não estava a compreender nada. Nessa altura vi a Muriel, a filha de uma proprietária do 4.º andar, ali no meio e ela disse: “Margarida, temos de os ajudar.” Comecei a ver as pessoas encharcadas de sangue, sangue a pingar, tinham sido atingidas por balas. Deixámo-los entrar, os que conseguiam andar melhor ela levou-os para cima, os que tinham mais dificuldade ficavam aqui. E então chegou a jovem que esteve aqui deitada no meu sofá, com duas balas, um jovem arrastava-a pelos braços, ela não podia subir. Já estavam sete ou oito cá dentro, e ela ficou no sofá.
Quanto tempo demorou tudo isso?
Foi uma confusão de minutos, talvez segundos. Primeiro fiquei paralisada, o tempo de realizar o que se passava, mas de repente tudo se mexeu. Depois daí vai uma sequência que a gente parece que nem dá conta do que está a fazer. Era preciso médicos, auxílio. Peguei no telefone e chamei os bombeiros, fomos ao terraço gritar para saber se estava algum médico ou enfermeiro no prédio. “Au secours, ajudem-nos, médicos, enfermeiros!” As pessoas abriram a janela quando ouviram os gritos mas quando falámos no tiroteio e no Bataclan fecharam a janela, tiveram medo. A minha colega aqui ao lado foi tocar a uma médica lá do prédio e essa senhora veio. Era preciso luvas, panos…
Tinha tudo aqui em casa?
Sim, e parece que estava tudo preparado. Pediam-me luvas e eu tinha. Pediam-me panos e tinha uns panos brancos limpinhos, de limpar os vidros, parecia que estavam ali à espera. Ela disse que precisávamos de gazes, e na minha casa de banho tinha ali uma tonelada delas que a minha irmã me tinha dado uma vez em Portugal. Ela trabalha lá num hospital e deu-me, meteu–as num saco e eu sem me dar conta pus na mala e trouxe, e ainda estavam ali. A médica perguntou – como é que você tem tudo? Não sei, precisa de mais alguma coisa? Estava ela a tratar da senhora e era uma confusão tão grande, todos queriam telefonar para a família. Começaram os telefonemas de Portugal, daqui, está tudo bem, estás bem, não te aconteceu nada? E eu dizia – vocês respondam, digam que eu estou bem, depois falavam em português e eles não percebiam, tentavam passar-me o telefone. Eu nem sabia com quem falava, só dizia eu estou bem mas não posso falar, e desligava. A gente subia e descia, dávamos assistência aqui e lá.
Que assistência?
Naqueles primeiros momentos, era preciso tentar parar o sangue. Comecei a enervar-me porque os bombeiros nunca mais vinham. Sempre que falava com eles, diziam-me que estavam a chegar. Mas não chegavam aqui dentro, ficavam na rua. Houve um momento em que eu fui enervada à entrada e dois polícias empurraram-me para dentro. E eu berrei: preciso de ajuda médica. Agora não pode sair. Ouvi os bombeiros e não vinha ninguém, voltei a sair e berrei: preciso de ajuda, tenho aqui à volta de 30 ou 40 pessoas, tenho pessoas feridas, preciso dos bombeiros. Não compreendiam que isto estava a passar-se no interior de um prédio. Tenho pessoas feridas, tenho muita gente aqui dentro. Finalmente perceberam e a partir daí começou a chegar a assistência, médicos, bombeiros. Tivemos quatro polícias à entrada da porta.
Era o único prédio que tinha aberto as portas?
Era o único que tinha recebido pessoas, deste lado. Houve outro numa rua mais à frente do Bataclan. Muita gente conseguiu meter-se nas duas entradas.
Tem ideia do tempo que isso demorou?
Deve ter sido até à uma ou duas da manhã. Depois começou a haver aquela calma porque as pessoas que estavam com balas já tinham ido nas ambulâncias para os hospitais. A mais ferida ficou aqui porque tiveram de trazer coisas especiais, ela não podia levantar-se e não a podiam mexer muito. Saiu por volta das três da madrugada. Mas havia ainda aquela confusão toda na rua e então arranjou-se café, água, havia quem quisesse comer. Eu disse-lhes: sirvam-se, vão ao frigorífico, há aí iogurtes, há tudo.
Conseguiu dormir nessa noite?
Não. As pessoas vinham a pingar sangue, fiquei com o prédio cheio de sangue e era necessário limpar tudo. Pus-me a pensar: não consigo dormir, não tenho sono, tenho de começar a limpar. Houve um polícia que disse – você não vai descansar? Não, acho que vou limpar. Não tive coragem de deixar as coisas assim, sabendo que ao outro dia havia crianças que iam descer e passar por esses corredores.
Limpou tudo nessa noite?
Comecei às cinco para acabar às nove da manhã. Só não limpei as escadas. Tentei limpar o mais grosso e depois limpei melhor. Foi muito difícil.
Estava sozinha?
Na limpeza encontrei-me sozinha. A minha colega ao outro dia ralhou, disse que podia ter esperado. Mas não conseguia pensar nas crianças a descerem e a verem aqui tudo cheio de sangue. Porque as pessoas, coitadas, chegavam e encostavam-se às paredes e caíam no chão. As paredes estavam cheias de sangue, o chão do meu elevador era branco e estava todo vermelho, não podia deixar assim. E como não conseguia dormir, ao menos limpei.
As pessoas que aqui estiveram voltaram cá?
A jovem que estava pior não veio porque tinha muitas dificuldades em andar, mas a pedido da mãe dela fui ao hospital vê-la. Ela própria pediu-me que fosse ver um psicólogo, achou que eu também devia ir. Uma jovem de 26 anos! Ela sobreviveu mas o companheiro com quem já vivia há seis anos morreu no Bataclan, ela soube no hospital que ele tinha morrido. Estava aqui uma jovem, a Juliette, que estava perdida, chorava por quantas tinha, não estava quieta, ia para a cozinha, pôs-se debaixo da mesa, estava enervada porque tinha lá o companheiro também. Na altura, as pessoas entraram em pânico, umas fugiram para um lado, outras para o outro. Ela veio parar aqui e o companheiro foi parar ao outro lado. Até se tornou engraçado, porque eu quando ando com roupa sem bolsos, como portuguesa tenho a mania de meter o telefone aqui [no sutiã]. Com aquele pânico, tinha utilizado o telefone e pu–lo aqui. Ela já me tinha pedido autorização e eu disse vocês telefonem para quem quiserem, têm o telefone da casa, telefonem para a família a prevenir que estão bem. E ela veio buscar o telefone e eu nem dei por ela fazer isso. E eu ia para telefonar e vi que era ela que o tinha. Juliette? Fui eu que fui buscá-lo, sabia o sítio. Aí até começámos a rir. Ela estava muito nervosa. A certa altura, recebeu um telefonema no meu telefone e aí ouvi-a aos gritos de choro, de desespero. Juliette, o que se passa? Tive medo que ela dissesse que ele tinha morrido. E ela abriu os braços e começou a gritar “ele está vivo”, e agarrou-se a mim, abraçou-me, acabou por chorar ela, acabei por chorar eu. Foi um daqueles momentos só vividos, porque contados é uma coisa, mas vividos foi outra.
Eram todos jovens os que estiveram aqui?
Havia um ou dois senhores que tinham à volta de 40, mas os outros eram de 20, 30, 35 o máximo. Depois vieram visitar-me, trouxeram-me flores, chocolates. E estamos em contacto. Tenho deixado ultimamente passar um bocadinho, não vamos andar sempre em cima deles, mas claro que fiquei surpreendida quando comecei a vê-los à entrada da porta, hoje um, amanhã outro. Eu não estava à espera disso mas fiquei feliz porque vi que eles foram embora e não viraram as costas completamente.
E as pessoas do prédio?
Certas pessoas vieram pedir desculpa, reconheceram que fizeram asneira, mas não podemos condenar porque é normal que tenham tido medo. Eu fiquei paralisada uns segundos mas medo não tive. Não deixei o medo entrar em mim. Mesmo depois ao outro dia e dias a seguir disse: a vida continua, temos de sair e seguir para a frente. Houve pessoas que me disseram para ter cuidado porque tinha aparecido na televisão. E eu disse: o que tiver de ser será, não tenho medo. Logo de seguida apanhei transportes, toda a gente dizia que podia rebentar uma bomba. Até pode rebentar à entrada da minha porta, então não saio de casa? Temos de continuar a viver.
Acha que o maior medo já passou?
Naquela altura foi mais pesado, mas penso que as pessoas mesmo agora têm um bocado de receio. Eu acho que isto ainda não acabou. De um momento para o outro podemos ter uma má surpresa. Não podemos dizer que vai ser ali ou acolá, oxalá que não aconteça, mas se tiver de acontecer acontecerá e ninguém poderá fazer nada, infelizmente.
Aqui até parece ser uma zona em que as pessoas convivem, de várias origens.
Nós estamos num país em que temos de tudo. Nos primeiros tempos as pessoas olhavam de lado para os árabes e eles sentiam-se um bocado visados.
Quando vai a Penafiel, pensa no que teria sido a sua vida se tivesse ficado lá?
Não imagino, sinceramente, porque nunca tive a ideia de ficar. E no entanto tive lá namorados. Se eu tivesse ficado em Portugal, talvez estivesse a trabalhar como empregada doméstica ainda hoje. Sinceramente, não me via em Portugal. Aqui sim. A minha ideia era vir para cá, estar cá, e depois a minha vida começou a desenrolar-se, o casamento, mais tarde a minha filha, mais tarde um divórcio. A vida continua. A minha mãe dizia “minha filha, atrás de uma serra está outra serra”. Quando eu subia, estava bem, quando descia dizia alto, já cá estou, tenho de subir outra vez. A vida é mesmo assim. Ainda ontem uma colega de infância telefonou-me e foi-me direita ao coração. Disse: tu não mudaste, és a mesma, aquilo que tu foste e aquilo que és não te vejo nada modificada. O que interessa é fazermos bem, fazer mal já há quem faça e que chegue. Sou uma pessoa um bocado independente, um bocado corajosa, sou muito alegre, gosto muito da convivência. Quando vou a Portugal chateio a cabeça às minhas irmãs todas.
Estão todas lá? Ninguém veio atrás de si?
Sim, veio uma irmã mas depois voltou para se casar com o namorado.
O que faz a Margarida aos fins de semana?
Aos fins de semana trabalhamos, como somos duas porteiras fazemos um fim de semana uma, um fim de semana outra. Quando trabalho, estou por aqui de castigo mas recebo sempre pessoas amigas. Quando não, sou uma pessoa que gosta muito de dançar, ah pois é. Quando tenho um convite, vou. Vivo sozinha mas tenho uma companhia, tenho um homem na minha vida, só que ele vive na casa dele e eu na minha, somos muito independentes. Aos fins de semana encontramo-nos, ou vamos dançar, ou vamos a um convite, ou ficamos em casa a ver televisão e a descansar. Mas não posso ficar quieta. Mexo-me muito, sou uma pessoa muito viva, gosto do convívio, seja aqui ou em Portugal. Quando tinha os meus pais, fazíamos uns passeios, uns piqueniques. Agora que não os temos fazemos isso entre irmãos, um jantar ou um almoço em casa de um.
Vai sempre em agosto a Portugal, passar um mês?
Enquanto os meus pais eram vivos, ia sempre a Portugal, a minha quinta semana [de férias] também. Mas neste ano decidi ir para outro lado – fui à Madeira. Mas também já fui ao Brasil, a Palma de Maiorca, a Tenerife, e conheço bem a França, já fui também à Córsega. Sou uma pessoa aventureira. E em Portugal também vamos por todo o lado.
O que é que traz quando volta?
A gente leva para dar mas no regresso não se pode trazer muita coisa porque é de avião. A minha irmã mata um porco, tem sempre um salpicãozinho para mim ou um bocadinho de presunto, e depois um queijinho. Quando a minha filha vinha de carro com o meu genro, o meu falecido pai dizia – leva estas batatinhas, este feijãozinho, leva isto e aquilo. Por vontade do meu pai trazia-se tudo. Mas hoje há tudo aqui em França, temos casas portuguesas, se precisamos vamos lá.
Quando vai dançar é em festas portugueses? O seu namorado é português?
Ele é português, sim, e dançamos tudo misturado, franceses, espanhóis, portugueses, é tudo. Como eu gosto das danças todas, tudo bem. Um tango, uma valsa, danças portuguesas, tudo isso se dança.
Teve muitos namorados?
Uma vez em frente à casa do meu pai estavam quatro namorados. O meu pai viu quatro rapazes à porta e disse – como é? É o meu namorado e os namorados das vizinhas. Mas não, eram todos meus. E disse para a minha irmã mais nova, vais àquele e dizes que eu não estou, ao outro dizes que fui para a avó, o outro pões a andar e o outro deixas ficar. O meu pai topou a cena. Acabei por me juntar com os quatro na festa. Eu era jovem.
Era fresca.
Era fresca. O meu pai disse que não me deixava vir para França e eu disse-lhe sou maior de idade, agora vou, já tinha 21 anos. Sabes o que é a França? Eu não mas você também não, nunca lá foi. Olha que a França não é Galegos [Penafiel]. Vim-me embora.
Por Ana Sousa Dias publicado in Diário de Notícias