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Maria Mendes, 28 anos

Maria Mendes, 28 anos

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MARIA Mendes é portuense e vive na Holanda. É uma das novas vozes do jazz. A música vive dos encontros de uma vida e a sua voz espelha todo o mundo passando pela Cidade Invicta e pelo Brasil. No próximo dia 27 de Janeiro vai realizar um sonho: cantar no mítico Blue Note, em Nova Iorque. O jazz é uma música de misturas. Maria vive na miscigenada Holanda e canta uma música sem fronteiras.

Como é que uma portista de Santo Ildefonso descobre o jazz?

[Risos.] Eu passo de Santo Ildefonso primeiro para Gaia, e daí novamente para o Porto, onde vou estudar jazz. Durante a minha infância, a partir dos 12 anos, começo a estudar música, no Conservatório de Gaia. Música clássica. Os meus avós maternos têm uma grande ligação à música clássica. O meu avô é compositor e a minha avó pianista e cantora.

Os seus pais também estavam ligados à música?

Não. Os meus avó maternos estavam, a minha mãe estudou música também. A ligação e a paixão ficou sempre: todos os fins-de-semana íamos a concertos clássicos. E uma vez por mês íamos a um concerto de música sinfónica ou a uma ópera. A ligação às artes não se ficava por aqui, a minha mãe é pintora. Era mais habitual todos os domingos irmos aos museus.

Mas esse tipo de “obrigações” não lhe criou aversão à música e as artes?

Eu acho que há determinadas linguagens musicais que devido às suas características têm de ser um bocadinho forçadas para uma pessoas aprender. A minha mãe fez uma coisa maravilhosa, eu sou a mais nova das três filhas e houve sempre uma intenção da parte da minha mãe de nos presentear com a cultura que o Porto oferecia. A música sempre esteve presente, na nossa casa ouviam-se discos de vinil, Vivaldi, música sinfónica e muita ópera. Pelo que a minha mãe me conta, eu aos três anos cantava no chuveiro e garantia que ia ser cantora de ópera. Uma das minhas tias fazia chacota de mim, dizia- -me: “Sabes lá o que isso é…” A verdade é que sempre tive o sonho de cantar qualquer coisa, mas ligado à música clássica, e daí aos 12 anos ter iniciado os estudos em Canto Clássico e Piano, Coro, Composição. A paixão do jazz quebrou um bocadinho o coração da minha mãe.

E lembra-se do início dessa paixão?

Em minha casa ouvia-se muita música clássica, mas o meu pai tinha muitos discos, e não se restringiam a esse género musical. Eu, como estudava música clássica, também ouvia mais esses CD, mas comecei, por curiosidade, a ouvir outras coisas que estavam lá em casa e aos 15 ou 16 anos fui descobrindo que o meu pai tinha muitos CD de jazz, mais vocal: muito Sinatra, Nat King Cole; Billie Holiday também, mas até tinha mais Nina Simone. Foi tudo uma junção de influências, a que se somou a minha evolução musical no Conservatório de Gaia e o meu núcleo de amigos músicos que escutavam jazz e faziam coisas. Nós, a partir dos 17 anos, fazíamos tertúlias em que pegávamos em canções conhecidas de jazz. “Somewhere over the Rainbow” e o “My Romance” foram os primeiros dois temas que cantei de uma forma muito despretensiosa. Ainda hoje me lembro de que vivi, nesse momento, um sentimento puro e genuíno de liberdade que não consigo ainda explicar, mas que ficou sempre na minha cabeça. Conclui o meu curso básico de Piano Clássico, o 12.o ano em Artes e os meus cinco anos de Canto Clássico. Na passagem dos 17 para os 18, disse à minha mãe: “Mãe, eu acho que não vou para Canto Clássico.” Foi um bocadinho difícil. Demorou uma semana a acostumar-se à ideia. Tive de justificar a minha escolha à professora Fernanda Correia e ao maestro Mário Mateus. Na música clássica há uma ideia de hierarquia muito forte. Veneram-se os mestres que ensinam. Não há a proximidade tu cá tu lá que existe no jazz. Aos 19 anos entrei para a Escola Superior de Música do Porto, estudei com a Fay Claassen, que é uma cantora de jazz holandesa. Aprendi imenso, a escola na altura era a única instituição que tinha licenciatura em Jazz. Foi a minha professora Fay Claassen que me levou para a Holanda. Fui fazer Erasmus, no ano do meu bacharelato, para o Conservatório de Música de Roterdão, que era onde a Fay Claassen também dava aulas. E à medida que fui aprendendo jazz também fui despertando para a Bossa Nova. Essa descoberta reforçou a minha ligação ao Brasil, onde tenho família. Tudo aquilo que eu sou ganhou mais força com o jazz.

Há um bocadinho a ideia de que os grande músicos do jazz são autodidactas e que o ensino da música não consegue expressar devidamente esse talento livre…

Historicamente, o jazz nos anos 30 e 50 era aprendido nas ruas. A sua origem está numa mistura dos blues com a música branca dos pianistas, que deu, muito mais tarde, o swing e o ragtime. É verdade que o processo de improvisação e o fraseado jazzístico é algo que se aprende ao escutar e ao experimentar. Mas também pode ser dado, e é cada vez mais trabalhado em escolas.

Mas isso não tem a ver com o facto de o jazz ter passado de música de negros pobres dos EUA para música de intelectuais e brancos, muitos deles europeus?

No início o jazz era a música daqueles que eram postos de parte na sociedade. Escutava-se em clubes, em bairros de prostituição, geralmente, em que os brancos e os negros tocavam juntos e eram amigos, coisa que à luz do dia não poderiam ser. O jazz começou a ganhar outras formas a partir do momento em que começou a ser veiculado por compositores como Cole Porter e Gershwin. O jazz nunca deixou de se transformar. Hoje temos um jazz europeu, muito virtuosista, que é uma espécie de música para músicos. Há o jazz muito comercial, que é uma espécie de jazz pop que coexiste com aquilo que advém dos jazz tocado nos EUA.

O que a fez ficar na Holanda?

Depois de fazer o Erasmus senti uma coisa muito interessante, por causa da centralidade geográfica: numa hora e 20 estou em Bruxelas, em duas horas estou em Paris, em 40 minutos estou na Alemanha. Os conservatórios, tanto o de Roterdão, como o de Amesterdão, atraem muita gente. Fui para Roterdão a conselho da minha professora e verifiquei que era um sítio ímpar: é dos poucos conservatórios que além da licenciatura em Jazz têm curso de World Music. E o departamento de World Music tem valências em tango argentino, música indiana, música turca. Na parte de percussão tem toda a América Latina e ensina também música brasileira. A minha curiosidade pela música brasileira era já do Porto, mas em Roterdão tinha a hipótese de aprofundar esses conhecimentos. E evoluir de uma aprendizagem que se baseava em ouvir CD para um ensino com músicos brasileiros e outros.

É irónico que tenha de ter ido para a Holanda para aprender a cultura musical brasileira…

É engraçadíssimo, mas o facto de a Holanda ser um país rico e com subsídios e verbas para o ensino artístico dava-lhe condições para trazer regularmente músicos brasileiros. Foi precisamente esta oferta que me fez ficar em Roterdão. Havia sempre workshops e formações a decorrer. Acresce que na altura em Portugal os músicos brasileiros eram postos de parte. Havia a ideia de que os músicos de jazz é que sabiam e tinham pouco a aprender com música de outras latitudes. Lá existe a ideia de que todas as vertentes musicais têm de ser respeitadas. Depois do Erasmus candidatei-me a mestrado em Roterdão e fui aceite. Fiz mestrado em 2007 e 2009. Nessa altura apostei em abrir um pouco a minha formação, fui para Bruxelas dois meses para estudar freejazz, e ali tive oportunidade de conhecer músicos fabulosos, como o David Linx. A minha tese de mestrado versou sobre novas formas de improvisação na música brasileira. Para isso tive a oportunidade de passar um mês em Nova Iorque e outro no Rio de Janeiro, a estudar. A sorte esteve do meu lado. Participei em concursos internacionais e ganhei alguns. Todas essas felizes oportunidades e coincidências não as teria tido no Porto.

Sente-se uma portuense na Holanda?

Sinto-me cada vez mais holandesa na forma de trabalho. Continuo a sentir que a minha casa é mais na Holanda do que cá. Mas está fora de questão não regressar a Portugal. É a casa dos meus pais.

Há uma nova geração de cantoras portuguesas ligadas a uma nova leitura do fado. Nunca pensou usar essa influência no jazz?

Há uma coisa engraçada. Na minha tournée do novo disco andei pela Suíça, pelo Brasil, pela Holanda, pela Alemanha e pelos Estados Unidos. Se há algum português na plateia, e mesmo estrangeiros, quando é o momento do segundo bis – o primeiro sou eu a escolher – , pergunto o que gostariam de escutar. E a maior parte das vezes as pessoas pedem fado. E costumo dizer por brincadeira que sou feliz de mais para ser cantora de fado. Gosto de fado, mas o género de fado de que eu gosto é mais tradicional e a minha voz tem muita pureza para ser uma voz de fadista. Acho que o fado está a sofrer neste momento um processo que outras músicas já tiveram, está a explodir em várias facetas. O que o torna uma música moderna e escutada de uma forma global. Não sei se no futuro irei cantar coisas de fado, tenho apenas a certeza que farei projectos em que cantarei em português, cada vez mais há esta sensação de que a música é o melhor veículo para mostrar quem sou. E eu sou portuguesa. Este álbum é metade cantado em português de cá e metade em português do Brasil, mas num próximo projecto quero ter mais composições minhas que serão escritas em português.

Como surge esta próxima actuação no Blue Note?

São felizes coincidências, mas também resulta do trabalho da minha editora, que tem sede em Nova Iorque. A Blue Note escutou o meu trabalho e convidou-me, e será a primeira vez que um artista português actuará nesta sala mítica. Aconteceu mais cedo do que eu julgava. Ainda estou a acordar para isto. Quero que este momento no dia 27 de Janeiro seja especial.

Texto de Nuno Ramos de Almeida e fotografia de Bruno Simões Castanheira, publicado in jornal i

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