A ESTRANHA ascensão de Jair Messias Bolsonaro ao primeiro plano da política brasileira deixa-nos uma dúvida: quais são as condições de partida que o tornaram favorito nesta corrida presidencial? Essas condições parecem depender de uma dualidade estrutural: por um lado, o contexto de desordem e instabilidade sistémica constituem a base material do projeto de poder que representa; e por outro lado, a defesa da liberalização das armas, o conflito aberto com diversos segmentos sociais, e a tendência de militarização da ação policial como resposta ao crime, destacam-se como contradições insuperáveis de um discurso populista que promete simultaneamente reinstaurar a ordem pública e retroalimentar o ciclo de violência.
Fruto da contingência de exceção pós-impeachment, o bolsonarismo surge como uma nova experiência política, construída em torno do apoio de bancadas evangélicas e ruralistas, segmentos das forças armadas e forças neoliberais da economia financeira global. Esta nova direita, mais radical do que a direita conservadora tradicional, não só tem vindo a conquistar a simpatia das elites dominantes, mas também procura seduzir os pobres e a nova classe média. A cola ideológica deste insólito aglomerado é baseada em formações discursivas que dominam as redes sociais e outros circuitos virtuais de comunicação, nos quais uma das constantes é a apresentação dos EUA como modelo de desenvolvimento desejável e parceiro geopolítico preferido.
Bolsonaro beneficiou desta complexa rede de interesses que opera nos subterrâneos da esfera pública, ocupando um dos extremos de um eixo orientador de sentido, onde a esquerda é associada a um ressentimento de ódio, vingança e desilusão, e a direita reclama para si mesma a missão de purificar e moralizar as estruturas de poder. Ao passo que esta dicotomia se intensifica, a figura reacionária do capitão de reserva é projetada através de uma imagem messiânica de estilo musculado, apoiado numa ideia nostálgica de nação disciplinadora e homogeneizante, cuja identidade se afirma na demarcação maniqueísta de uma linha divisória entre amigos e inimigos de uma velha ideia imaginada de Brasil.
A mão cheia de Generais que navega silenciosamente à vista rumo ao Palácio do Planalto, constitui a coluna militar e torre de vigia dessa linha de visão e divisão, definidora do que será permitido e proibido, tolerado e reprimido, louvado e censurado, revidando fantasmas que espreitam pelas feridas abertas de uma história já por muitos esquecida. No contexto de uma sociedade desconjuntada, a promessa de um futuro de normalidade e segurança que inchou o eleitorado bolsonarista, é mais do que uma miragem improvável. É uma ilusão perigosa na qual a auto-supressão da nossa liberdade de escolha, é o passo decisivo para a perversão da democracia.
Para os mais de quarenta milhões de brasileiros que optaram pela alienação eleitoral no primeiro turno, a democracia já se encontra em tão mau estado que nenhum dos candidatos merece o seu voto. É desta desmoralização transversal que a indiferença e apatia submergem a cidadania, ao ponto de cegar o mais vital discernimento do que está em jogo neste segundo turno: a escolha do chefe de estado de uma das maiores democracias do mundo, mas também de um país profundamente marcado por uma das maiores taxas de desigualdade e analfabetismo funcional, que por si só fazem do dever de voto uma responsabilidade acrescida. E na disputa entre dois candidatos, um não-voto será sempre meio voto a favor do presidente eleito. Por isso aqueles que escolherem não escolher, deixarão também sua impressão digital na definição dos rumos que a sociedade brasileira irá seguir nesta bifurcação da história.
Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta
zé da uma olhada nesta analise do Demétrio Magnoli , me parece bastante apropriada ao momento
: Assimetria
– Folha de S. Paulo
É fácil propor espelhismo entre Bolsonaro e Haddad, mas seria à base de sofismas
Um leitor solicita que eu produza a “carta que Bolsonaro não escreverá”, como complemento da “carta que Haddad não escreverá” (Folha, 13/10). Fazê-lo, porém, seria sugerir uma simetria que não existe.
Há simetria se uma figura no plano pode ser dividida em partes de tal modo que elas coincidam exatamente, quando sobrepostas. A simetria perfeita é uma construção matemática. Na biologia, na arquitetura e na arte registram-se simetrias quase perfeitas. Em política, existem simetrias estruturais, mas não simetrias formais.
Exemplo clássico: os totalitarismos nazista e stalinista, tal como descritos por Hanna Arendt. Mesmo se seus regimes exibiram formas muito distintas, Hitler e Stalin seriam capazes de reconhecer, um no outro, as suas próprias imagens. Isso não acontece com os dois candidatos presidenciais restantes.
Nas simetrias axiais, o eixo de simetria separa a figura em metades espelhadas. É fácil propor espelhismos políticos entre Bolsonaro e Haddad. O empreendimento, contudo, sustenta-se à base de sofismas.
A linguagem da violência é um traço comum ao PT e a Bolsonaro. Mas eles procedem de modo assimétrico. Os alvos do PT que insulta (“fascista”, “racista”) ou tenta excluir alguém do debate público (“inimigo do povo”) são adversários políticos definidos. Já os alvos de Bolsonaro são, além de adversários singulares, grupos sociais inteiros: mulheres, gays, quilombolas. (Nota: o descarrego de Marilena Chaui, “eu odeio a classe média”, não é regra, mas exceção).
A violência, ela mesma, também aproxima os antagonistas. Mas não há simetria. O PT habituou-se a praticar violência simbólica, via militantes que irrompem aos berros em debates políticos e eventos acadêmicos ou se organizam em “atos de repúdio” contra figuras públicas. Já os “camisas amarelas” bolsonaristas inauguram, antes ainda do desfecho eleitoral, a prática da violência física contra pessoas comuns que expressam opiniões divergentes. (Nota: o atentado sofrido por Bolsonaro partiu de um indivíduo desequilibrado, não de uma turba militante).
Tanto o PT como Bolsonaro devem ser reprovados no teste do repúdio a regimes ditatoriais. O PT brada contra ditaduras “de direita”, mas acalenta as “de esquerda”; Bolsonaro faz o contrário.
Também aí, inexiste simetria. O apoio do PT às ditaduras cubana e venezuelana exprime-se genericamente. A nostalgia de Bolsonaro pela ditadura militar brasileira inclui o elogio da tortura e a celebração de torturadores. O silêncio de Haddad diante da morte de Fernando Albán, um opositor sob custódia da polícia política de Maduro, num caso similar ao de Vladimir Herzog, não equivale às homenagens de Bolsonaro ao coronel Brilhante Ustra. As duas posturas são repulsivas, mas assimétricas.
A prova decisiva de que a simetria é falsa encontra-se na história. O PT é fruto da transição da ditadura para a democracia. O partido, principal máquina eleitoral e parlamentar do Brasil, só pode existir no ambiente de liberdades oferecido pelo regime democrático.
Nos seus longos anos poder, apesar de uma certa retórica voltada para dentro, o lulismo respeitou a regra do jogo —inclusive quando seus dirigentes foram condenados e encarcerados. Já Bolsonaro é fruto de uma crise da democracia: o movimento pela “intervenção militar” que acompanhou, como sombra agourenta, o processo do impeachment. A seleção de seu vice e de um círculo de conselheiros militares arromba a porta que separava a política dos quartéis.
Mesmo nas circunstâncias atuais, Haddad não assinará uma crítica dos erros de política econômica, dos crimes de corrupção e das taras ideológicas do PT pois é prisioneiro do lulismo. Se corresse riscos eleitorais, Bolsonaro assinaria um termo falso de imorredouro amor pela democracia pois não está preso a nenhuma estrutura política estável.
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Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.