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Visão de artista por Cesário Verde

Visão de artista por Cesário Verde

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Subitamente – que visão de artista! –
se eu transformasse os simples vegetais,
à luz do Sol, o intenso colorista,
num ser humano que se mova e exista
cheio de belas proporções carnais?!

E eu recompunha, por anatomia,
um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
uma cabeça numa melancia,
e nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
negras e unidas, entre verdes folhos,
são tranças dum cabelo que se ajeite;
e os nabos – ossos nus, da cor do leite,
e os cachos de uvas – os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
nas posições de certos frutos. E entre
as hortaliças, túmido, fragrante,
como alguém que tudo aquilo jante,
surge um melão, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
vi nos legumes carnes tentadoras,
sangue na ginja vívida, escarlate,
bons corações pulsando no tomate
e dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

in O livro de Cesário Verde, Círculo de Leitores, setembro 1986, página 46

*

NATUREZA MORTA

Que faziam entre os repolhos
as couves de sabóia os chuchus
as beringelas as endívias
os nabos e as beterrabas
os teus seios nus?

Jorge Sousa Braga in O poeta nu [poesia reunida], Assírio & Alvim, 2.ª edição, abril, 2014, página 152

*

DIÓSPIROS

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

Jorge Sousa Braga in O poeta nu (O segredo da púrpura), Assírio & Alvim, 2.ª edição, abril de 2014, pag. 153

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