MATILDE era decerto a mais formosa e talentosa das meninas da escola primária da pequenina povoação de Rio Mau. Usava nas tranças do cabelo negro que lhe pendiam sobre os ombros, uma flor de malmequer espetada que ia bailando de forma graciosa quando saltava as linhas rectangulares rabiscadas na terra, jogando à Macaca. Nada podia perturbar a pureza deste ser que apenas com seis anos já imaginava o mundo inteirinho em sonhos e manifestava vontades interesseiras de alargar horizontes, conhecer novas terras as quais, pela primeira vez, ouviu a professora descrever na velha escola primária situada junto ao cais do Remoinho a dois passos do rio.
Havia nos seus olhos cor de água, belos como as mais lindas transparências das águas do Douro e límpidos como as que corriam no ribeiro que desaguava ali perto, uma avidez constante pelo saber, um secreto desejo que foi crescendo no seu coração infantil e se havia de manifestar em circunstâncias específicas e habilmente preparadas por ela. Aguardou com serenidade o momento da realização do seu primeiro sonho como quem espera pela luz da madrugada que demora a chegar, mas traz sempre consigo o despontar de um dia novo e de uma esperança renovada.
– Eu quero ver o mar!
Foram estas as palavras da Matilde numa manhã de um dia calmo, doce e sereno de Outubro da sua também doce e terna meninice quando a mãe lhe perguntava que prenda ela queria receber no dia dos seus anos.
Prenda!
Quantas foram essas secretas esperanças e intermináveis ilusões embrulhadas em papel de fantasia e alimentadas no peito carinhosamente e que todos os anos nasciam e acabavam por morrer sem qualquer possibilidade de concretização? Muitas!
Ninguém imaginava as razões objectivas que a levavam a tão singular e obstinado pedido, mas sim outras, inocentes, simples e comuns à maioria das crianças da sua pequena aldeia espicaçadas por uma curiosidade hereditária.
Ver o mar, pousar as vistas nessa azul imensidão de água salgada morada de belos navios onde decorriam as extraordinárias aventuras de piratas e terríveis naufrágios plasmados primorosamente nos livros de Emílio Salgari, era o sonho de Matilde e de algumas crianças da sua idade e de muitos idosos que iriam viver e morrer sem nunca alcançarem essa visão fantástica.
O mar não é distante de Rio Mau, escassos quilómetros separam o atlântico deste pedaço de chão onde ela tinha nascido, mas, sem horizontes prolongados, cercada por montanhas quase intransponíveis, sem estradas ou caminhos, tendo como único refugio o rio Douro, só poderia imaginá-lo na sua grandiosidade e deslumbramento.
O rio corria para lá todos os dias, todas as noites; impaciente e nervoso, seguia os trilhos do passado sem trazer uma notícia, sem um convite, sem nunca lhe falar dele mesmo nos dias em que misturado com água salgada, voltava a Pédemoura empurrado pelas marés vivas de Setembro.
O rio Douro, o seu primeiro amor verdadeiro, o espelho que reflectia a sua imagem pequenina, o berço doirado onde nasceram as suas utopias e inocentes primeiras fantasias, tinha para ela projectos de vida que sempre teimou em ignorar. Mas o rio, nunca impediu, não quis impedir que as águas da vida lhe dessem outro chão por alguns anos. Um dia partiu no sentido inverso do seu sonho, seguiu a família que emigrava para França, o êxodo que dilacerou o país, andou por terras distantes onde se acentuaram as saudades que lhe devoravam a alma e, movida por elas quando já adulta, voltou ao lugar onde nasceu. Soube que o rio teve saudades dela, que se revoltou na sua ausência o tolo; perdido de ciúmes, a julgar que ela o tinha esquecido e trocado por outro, sem saber que ela o levara no coração, que o deixou correr nas suas veias livre e senhor de todo o seu destino, como um louco inundou a terra.
– Tu queres ir ver ao mar Matilde? Não queres antes uma boneca, uns vidrinhos, um carrinho, umas canequinhas e outras coisas assim?
– Não minha mãe, o que eu queria muito era ver o mar; sentir as ondas e ouvir aquele rumor que se ouve na concha que está acolá em cima da mesa da sala!
O búzio univalve que a fascinava. A couraça onde o mar explodia em sussurros que a prenderam ao nascer, repousava e enfeitava a velha mesa há dezenas de anos como joia abandonada, relíquia que o mar enviara no propósito de fazer amigos ou de reclamar atenção, permaneceu ali adormecida, sem qualquer aparente serventia, objecto de decoração somente, mas sempre na expectativa de fascinar alguém.
Conseguiu os seus intentos, Matilde colocava-a todos os dias nos seus ouvidos e sentia esse sussurro mágico do mar como se fosse uma voz antiga que de muito longe viesse aqui falar com ela.
Teve a sua prenda, a materialização da sua visão quase celeste e, logo no outro dia corria para ele na camioneta da carreira Gondomarense e, já na cidade do Porto, partia da Praça do Infante no nostálgico eléctrico da Cantareira que ao desfazer da curva dos Pilotos da Barra lhe mostrou as palmeiras da Meia-laranja com o oceano ali todo à sua espera.
Os seus olhos de menina que reflectiam o azul do mar e do céu, marejavam-se de lágrimas neste instante e de água pura ficou a ser toda paisagem.
Sentou-se nas coçadas pedras do Cais Velho e procurou no infinito horizonte as causas de tamanha e aflitiva inquirição; um barco, ela queria ver um barco que rasgasse as ondas, que desfraldasse as velas, talvez um veleiro que de mares distantes viesse refugiar-se neste magnifico estuário de onde partiu invencível armada, ou outro perseguido por piratas de pernas de pau e olhos vendados por anteparas de couro, de ganchos de ferro enfiados nas mãos, os mesmos ou navios idênticos aos de que falavam as historias aos quadradinhos do “Mundo de Aventuras” que o Afonso Leal lhe vendia usadas no Bazar de Penafiel.
Matilde queria ver o ribombar dos canhões do Castelo do Queijo a despejar bolas de fogo e ferro sobre as armadas dos infiéis, dos saqueadores que evadiam a Pátria que já lhe tinham ensinado a amar. Ela queria os seus sonhos de criança intactos, reproduzidos ao pormenor das histórias fascinantes que o pai lhe contou sem perceber que lhe traía a mente, que a lançava num mundo tão irreal e tão fantástico de cujo o estilo assombroso nunca mais foi capaz de sair.
Uma enclausurada é o que se sente hoje por nunca ter quebrado as amarras das conspirações em que a vida a meteu sem lhe ter dado ouvidos, sem lhe perguntar ao menos se ela queria ou não ser feliz.
Olha ainda agora esse horizonte de água perdido nas neblinas da vida como um náufrago solitário e aflito em alto mar. Recorda o que era nesse tempo de criança, a felicidade que transbordava do seu pequenino coração e naquilo em que se transformou depois de ter perdido o mar, o seu veleiro, o pai que lhe contou as histórias e a mãe que a levou até ao oceano só para lhe mostrar uma ilusão. Olha espantada o que sobrou desse feliz presépio desfeito reconhecendo ainda em si própria, a criança desejosa a quem só sobrou um horizonte.
– O mar é tão grande e não vejo barcos minha mãe e eu queria tanto ver um barco!
Não havia qualquer embarcação a aproar ao porto de Leixões, sequer uma traineira que demandasse a barra para se refugiar num recanto qualquer do estuário do Douro. O que Matilde sentiu naquele momento foi o apelo genuinamente português passado de geração em geração pelo gemer das guitarras de Lisboa e relembrado em cada recanto do mundo nos vestígios deixados pelos nossos antepassados que nunca temeram a imensidão do mar. Apelo do sangue que nos atrai, que nos faz correr para o mar sem mesmo nunca antes o termos conhecido.
Havia lágrimas a correr nas faces de Matilde pela desilusão que estava a sofrer. A sua quimera, a sua maior aspiração, morria ali nas areias da praia da Foz do Douro sem qualquer possibilidade de realização.
Quis navegar, percorrer a estrada líquida dos seus sonhos, mas compreendeu naquele instante que o mar é grande demais para caber num sonho.
A mãe olhou-a comovida na bondade de um olhar feito de ternura. Pegou-a ao colo e apertou-a com força contra o peito ao mesmo tempo que lhe indicava com a mão estendida uma traineira a balouçar solitária na outra margem do rio Douro:
– Olha acolá no outro lado, na Afurada, não vês um barco…que lindo barco!…
– Não minha mãe, aquilo não é um barco, aquilo, é uma barca de fantasia!
Texto de Manuel Araújo da Cunha e fotografia de José Rui Correia