Aquela casa vazia à beira do rio, ainda vê passar barcos que navegam com rumos diversos enquanto sonha com crianças a brincar no pátio sobranceiro à água e com pessoas adultas que por ela passaram há mais de cem anos atrás. Quer afastar de si o pesado silêncio que tomou conta das suas divisões, em repetir a história, voltar a ser uma habitação familiar com pessoas vivas a residir lá dentro.

A casa amarela à beira do rio, foi um lar onde os natais eram muito iguais aos que são os de hoje; brancos, solidários, fraternos e cheios de amor e de ternura.

Ao longo dos tempos, tudo a vida nos dá e tudo nos tira. Acabamos por perder o que possuímos por motivo da inevitável condição de mortais que nos afasta de todas as coisas que amamos e de todos aqueles com quem convivemos, para sempre.

Permanecem neste mundo as flores que coloriam os nossos dias, as nossas aspirações, os nossos sonhos e tudo aquilo que em determinado momento tocamos com as mãos, órgãos que muitas vezes expressam melhor do que as palavras os nossos sentimentos, com o coração que tudo sente e com os olhos, janelas que nos ajudam a iluminar o mundo em que vivemos e a lembrar aos que ficam, as memórias mais relevantes da história das nossas vidas.

Nos dias que passam, somos todos sábios, percebemos de quase tudo, mas não sabemos quem somos, de onde viemos, nem porque é que os rios correm há milhões de anos com destino ao mar. Muitas vezes tranquilos e doces como os sorrisos das crianças pequeninas. Outras vezes furiosos e inquietos, mas sempre fios de água que geram a vida. São sublimes substâncias e apenas rios.

As casas pensam, interagem com quem nelas habita. São muito mais do que simples moradias, têm vida própria, marcam a nossa personalidade para sempre. Às vezes amedrontam-nos, produzem ruídos estranhos durante as noites de insónias quando em vigília, nos apercebemos de tudo o que nos rodeia. Assustam-nos com o ranger das tábuas, dos móveis, das portas ou dos materiais que sustentam toda a sua arquitectura.

Conservam recordações de pessoas que nelas residiram e por lá ficaram para sempre em espírito, guardam segredos entre aquelas quatro humildes paredes. Sonham os nossos sonhos, os mesmos que nós sonhamos, às vezes serenos, outras vezes repletos de terríveis e inexplicáveis pesadelos.

As casas, todas as casas são feitas de matérias semelhantes, também de suor, de lágrimas, de dor e sofrimento de quem as construiu a pulso, tijolo a tijolo, pedra a pedra na esperança de um dia vir a ter um lar.

Conta-se que há poucos anos, um homem dos lados da Vila da Feira, veio procurar aqui as suas origens num dos seus antecedentes que supostamente morou naquela casa amarela.

Disse que teria ficado a viver nessa habitação por alguns anos, que era procurado pela polícia política, que se refugiou ali e permaneceu até aos seus últimos dias, sem nunca ter sido encontrado pelas autoridades policiais e sem nunca ter regressado à sua terra natal.

Isso no tempo em que quase todos neste país, eram perseguidos por ousar sonhar com liberdade, época em que aquela casa não era amarela, mas tinha pessoas a viver lá dentro e era igual a todas as outras vivendas pobres da beira do rio, em Rio Mau, pequena aldeia de pescadores e de barqueiros, que ainda conserva muito da sua fisionomia ribeirinha, os usos e costumes, a fraternidade e solidariedade para com um desgraçado e infeliz semelhante perseguido que abrigou e nunca o denunciou, é o que de melhor ela tem.

Ninguém pode modificar as origens e o destino de um povo que tem uma identidade regional, cultural e geográfica próprias e muito diferentes de todas as outras da região e que sempre foi Douro, rio e mar.

Todavia ninguém é deste mundo, a nossa verdadeira casa é muito longe daqui.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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