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A louca da praia

A louca da praia

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A TABERNA tinha uma espécie de esplanada no passeio com apenas uma mesa de chapa e duas cadeiras de plástico branco e, no lado direito, pousado no chão, um pequeno fogareiro pronto a grelhar peixe ia ardendo lentamente e, encostada à ombreira da porta de alumínio prateado, estava uma caixa de sardinhas com alguns restos lá dentro namorados à distância por dois gatos.

Numa das cadeiras, estava sentado um homem de idade avançada que segurava na mão direita um copo com vinho tinto e, atravessado nos dedos da outra mão pousada sobre o tampo da mesa, tinha um cigarro ainda a fumegar.

Sentei-me na cadeira disponível não sem antes pedir licença ao sujeito com aspecto de pescador antigo.

O tasco ficava em frente à praia numa rua movimentada por gente que ia e vinha em direcção da lota onde todos os dias se transacciona o pescado capturado em alto mar. O cheiro característico das zonas piscatórias, impregnava a atmosfera misturado com o da maresia que chegava activo ao meu nariz e ao das pessoas que passavam transportado por uma ligeira brisa. O mar a uma distância curta sobrevoado por centenas de gaivotas,  era um colosso adormecido com ondas melancólicas que vinham desmaiar sem pressa na areia deserta.

Os meus olhos perscrutavam o horizonte de água limitado por uma leve neblina que me impedia de ver até ao infinito e, como objectiva de máquina de filmar, iam-me transmitido informações diversas, barcos ao longe, traineiras a entrar na barra, navios ao largo fundeados à espera de porto, tudo movimentos que o meu cérebro arquivava na rigidez de um disco feito de matéria orgânica. Subitamente repararam num vulto negro espetado na areia muito próximo do sítio onde o mar rebenta. Ao longe, parecia-me a quilha de uma embarcação à espera de se fazer ao mar ou destroço de naufrágio que o oceano expulsou para terra. De repente a figura moveu-se, deixou a posição hirta em que estava para se sentar sobre o tapete húmido e então pude ver que se tratava de uma mulher já de uma certa idade toda vestida de negro.

A indiscrição tomou conta de mim e impelido por essa estranha sensação de curiosidade, decidi perguntar ao velho sentado na mesa ao meu lado quem era aquela pessoa e o que fazia ali:

– É uma louca, há sessenta e quatro anos que vem todos os dias sentar-se naquele lugar, fica lá um bocado de tempo e depois vai-se embora.

Sem esperar qualquer comentário da minha parte continuou:

– É uma longa história, se o senhor não tiver pressa eu conto-lhe.

– Não tenho pressa nenhuma, respondi, até gostava de ouvir essa narrativa se o senhor não se importar de me contar, confirmei.

Pegou no copo do vinho já vazio e entrou na taberna para regressar um minuto depois com ele a transbordar de cheio. Bebeu um trago longo da bebida que pode destruir o corpo mas simultaneamente anestesiar a alma:

– Aconteceu, já lá vão sessenta e quatro anos, faz agora no dia um de Dezembro. O dia nasceu meio encoberto, não chovia nem fazia grande vento, as traineiras regressavam com o peixe mas a pescaria não tinha sido abundante. Por volta das dez horas da manhã entrou por ali dentro um barco carregado de sardinhas. Os mestres das outras embarcações perante tão afortunada captura, decidiram chamar as suas tripulações e à tarde fizeram-se ao mar mais uma vez. Eram cento e três barcos a rumar ao sul em direcção ao mar da Figueira da Foz. Ainda não tinham passado muitas horas quando o tempo mudou inesperadamente. O o vento acelerou, as ondas transformara-se em montanhas cavando precipícios de mais de dez metros de profundidade onde as traineiras entravam e saiam numa luta de morte. Sem que ninguém contasse o vento rodou para noroeste transformando-se num ciclone com rajadas tão fortes que despedaçavam os mastros dos navios e a atmosfera começou a ficar gelada. Negras nuvens formavam-se no inferno e despejavam chuva em cima das embarcações que com os motores a toda a força procuravam um porto de abrigo. A noite desceu sobre o mar e sobre a terra e no meio das trevas mais de uma centena e meia de homens lutava desesperadamente contra a fúria dos elementos e na Praia Nova começaram a ouvir-se rumores misturados com soluços, pessoas a correr de um lado para o outro desorientadas e aflitas.

Calou-se por momentos, passou a mão engelhada pela testa suada, pegou no copo e bebeu mais um trago de vinho. Olhei-o com mais atenção nesse momento de pausa, tinha um rosto cavado por profundas rugas que começavam na testa e acabavam no pescoço que parecia uma folha de papel amarrotada. Na cabeça um boné de pala, assegurava conforto a um crânio sem cabelos. Que idade teria, oitenta, talvez um pouco mais a julgar pelo rosto enrugado e pelas mãos de dedos estragados pela artrose. Era um pescador sem dúvida nenhuma a figura que estava sentada a meu lado, via-se nos seus olhos cor de mar que reflectiam vagas, turbilhões de espuma e azuis permanentes.

Pousou o copo sobre o tampo da mesa, com as costas da mão limpou os beiços e continuou:

– Acolá em baixo no molhe sul, as famílias daqueles desgraçados apinhavam-se na esperança de verem entrar as traineiras que tinham levado os seus maridos, os seus filhos, os seus avós e muitos amigos para a faina que prometia pão. Tanta angústia e tanto desespero em cima daquelas pedras lambidas pelo mar, nunca se viram até hoje.

Em determinado momento começaram a ver-se ao longe as luzes de navegação dos barcos, alguns tinham encontrado o caminho para casa e entraram salvos no porto.

Havia tantos gritos ali na praia quando chegou a notícia de que quatro traineiras tinham naufragado e que noutras, os homens tinham sido arrastados pelas vagas medonhas de um mar enfurecido. Confirmou-se a morte de cento e cinquenta pescadores e de dois desaparecidos. Era gente daqui de Matosinhos, de Espinho, da Murtosa, da Póvoa de Varzim e das Caxinas de Vila do Conde.

Mais uma pausa e o resto do vinho escorregou a ferver pela sua garganta seca. Outra vez as costas da mão a passar nos lábios, mais um cigarro a sair do maço engelhado e o fumo a esmurrar a pala do boné tentando evoluir no espaço.

– Dois nunca apareceram, um deles era o marido dela. Deixou-a com três filhos pequenos nos braços, criou-os como pode mas todos os dias enlouquecia um bocadinho até se tornar naquela desgraça que o senhor está ver. Se ao menos ela tivesse o corpo do seu homem enterrado numa campa do cemitério, se pudesse ir lá de vez em quando rezar e levar-lhe flores, as coisas poderia não ter chegado a este ponto. Para a gente o mar é quem manda meu amigo, tanto dá como tira e dessa vez tirou demais. Comovo-me sempre quando conto esta história, dantes até me vinham as lágrimas aos olhos, agora não, o meu coração transformou-se numa pedra, às vezes ainda tenta voltar aos tempos em que se emocionava até com o sorriso de uma criança mas desanima depressa, falta-lhe a pureza de quando era novo, durante estes anos todos a sofrer constantes desilusões,  ofensas de muitas pessoas e a perda de um filho que o mar me levou, endureceu e deixou-se envelhecer como eu.

O copo estava vazio, ele fez o gesto de o levar à boca que tremia mas desistiu ao verificar que não tinha mais vinho. Levantei-me, peguei na vasilha e fui dentro da taberna enchê-la mais uma vez do líquido que pode matar o corpo mas que anestesia a alma.

Deixei que o silêncio que se fez a seguir fizesse a sua cura, senti que o velho pescador estava perturbado e muito longe da insensibilidade que me disse trazer dentro do peito. Os homens do mar são duros como as rochas que só um oceano desfaz, há uma altivez nas suas personalidades que sem ser prepotente, reflecte o cunho do seu arquitecto. Foi o mar quem os fez à sua semelhança, foi ele que os transformou em coragem e dureza, foi também ele que lhes legou parte de si próprio, generosidade, solidariedade e valentia sem limites.

Precisava de ver ao perto aquela mulher sentada na areia, tentando antecipar uma possível rejeição perante um estranho e assim evitar dissabores, perguntei ao meu amigo:

– Acha que se fosse à beira dela falaria comigo?

– Falar não fala muito, as palavras já lhe morreram nos olhos mas de certeza que lhe vai perguntar se viu o homem dela por aí!

Fui ao areal, para não parecer tão óbvio dei uma volta mais longa e vim com calma como quem se passeia à beira mar. Quando estava a cerca de dois metros dela, pode ver um rosto transfigurado, encorrilhado como uma folha de papel calcada por centenas de botas de batalhão militar e os cabelos ralos e brancos, apareciam-lhe a espreitar por debaixo do lenço negro que lhe cobria a cabeça. Olhou para mim com uns olhos a reluzir de vivos e onde a luz da esperança possivelmente ainda tinha morada e, sem que eu pudesse dizer nada perguntou.

– O senhor não viu por aí o meu homem? É alto, moreno, bonito e tem um bigode parecido com o seu um bocadinho mais farfalhudo.

– Não, não vi ninguém que corresponda à sua descrição minha senhora!

– Ninguém o viu, ninguém sabe dele, ninguém me diz onde ele está, murmurou como se falasse consigo própria.

As ondas vinham molhar-lhe os pés nus, rendilhados de espuma carregada de salitre ou lágrimas salgadas de um mostro que não sabe controlar a sua força?

Alguém viu por aí o homem desta mulher vestida de negro? É alto, moreno, bonito e tem um bigode parecido com o meu um bocadinho mais farfalhudo.

Publicado no livro Fado Falado – Crónicas do Facebook

SOBRE O AUTOR:
Manuel Araújo da Cunha  (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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