QUANDO o Zeferino Lucas transpôs mais uma vez a soleira da porta da miserável habitação onde vivia para marchar até ao rio, estava longe de imaginar que aquele casebre sem qualquer conforto haveria de vir a ser o abrigo de uma santa.
As figuras veneradas, que todos consideram e bem, habitar exclusivamente num lugar inacessível, tão longínquo das coisas e vidas terrenas, só excepcionalmente adquirem forma de simples mortais e, contam-se pelos dedos de uma só mão as vezes em que um ser santificado apareceu encarnado neste mundo. Não porque não houvesse necessidade permanente de iluminar e amparar as almas que vagueiam num espaço sem qualquer protecção, mas mais pela razão óbvia de que o lugar deles é no céu, bem perto do ser Omnipotente. A Ele cabe administrar os destinos do universo, decidir o castigo ou o perdão e só à sua Santíssima ordem poderão acontecer milagres.
Apesar de serem ainda sete horas da tarde, o barqueiro deixou já deitados na cama os cinco filhos pequenos. Anoitece rapidamente no Inverno e depois, luz eléctrica que permitisse ficar mais algum tempo em serão, não existe nesta casa e mesmo nas outras que compõem o lugar, salvo raríssimas excepções.
Caminhou pelas ruas do Castelhão até à beira do Douro. Foi à vida, ganhar o pão de cada dia a remar num monstro de madeira carregado de carvão antracite desde Jermunde até Campanhã. Tripulante desses rabões negros, era, como outros, um escravo entregue à dureza da arte e às muitas fúrias do rio.
Levou no coração as saudades de casa, da Palmira sua esposa que o via partir, sempre com o coração nas mãos, a recear o perigo que sabia espreitava em cada curva do rio, em cada madrugada de violento temporal. Levou as saudades do Henrique, do Francisco, do Luís, da Ilda e da Isabel, crianças pequenas que não compreendiam ainda as forçadas ausências do progenitor, e ali ficavam naquele sombrio lugar sem pão, à espera que o seu regresso trouxesse ao menos uma côdea de broa para rilhar.
Nunca se viu semelhante miséria neste mundo, a vida por aqui é um tormento, uma constante luta pela sobrevivência que nem todos conseguem garantir. Ficam-se mortos na tenra idade, desconfortáveis, famintos, desnutridos e à mercê de todas as doenças do mundo. Morre-se por tudo e por nada, tudo são dificuldades; mas vingar um filho é heroica tarefa, que nem todos conseguem levar a bom porto.
De vez em quando, o sino da capela toca a anjinho, e mais uma urna branca e pequenina segue o caminho do cemitério. Lá dentro vai a vida que era flor e murchou antes do tempo. É preciso nascer-se muito forte para resistir.
A Palmira ficou a aconchegar a ninhada que dormitava toda numa cama só. Ali, dentro das quatro paredes da casa de xisto, faltava quase tudo, mas o amor, o carinho e a ternura de uma mãe, ainda não tinham acabado. E, mesmo subjugada pela desgraçada vida, aquela heroica mulher desdobrava-se em cuidados, a tratar dos filhos.
Eram tempos de Inverno, o frio vindo das serras entrava pelas frestas da porta, tangido por um vento muito forte, e as mantas de aconchego daquela gente eram retalhos de velhas velas dos barcos, pano cru tão cru como a realidade da vida.
Serenava a aldeia toda neste refúgio circundado por montanhas, com o rio a ser sozinho a fábrica do pão, e estalava enfim a paz na humilde casinha na Pia da Casca. Um silêncio pesado caiu sobre a Terra, como manto divino e protector.
Bateram à porta da cozinha, única na habitação, e a mulher, receando um assalto, espreitou pelo portelo antes de abrir com todo o cuidado. Era uma velhinha que batia à sua porta. Desleixada, suja, rota, com os cabelos desgrenhados, encharcada da cabeça aos pés e a tremer de frio, olhava-a com uns olhos a reluzir na noite, que eram uma angustiada súplica, como a pedir-lhe: – “deixa-me entrar!”
Era costume o Zeferino e a Palmira acolherem os pobres vagabundos que por ali passavam frequentemente. Gente desalojada pela vida, pessoas vítimas das maldades de alguns e, num gesto solidário só conhecido pelos simples, acolhiam-nos e repartiam com eles o pouco que lhes fazia falta. Porém, já muitos indigentes por ali tinham passado e tiveram abrigo, mas uma velhinha como esta, nunca tinha acontecido aparecer por aquelas bandas.
Entrou, aconchegada pela anfitriã que, ao reparar no seu miserável estado, a lavou e vestiu com as suas próprias roupas. Depois de limpa, do caldo que tinha sobrado da ceia (os pobres têm sempre caldo), encheu-lhe uma malga que a mendiga saboreou, a sorrir. De seguida, rezaram o terço. A velhinha levantou-se então da mesa da cozinha, foi espreitar pelo postigo e perguntou:
– O que é aquilo amarelo lá em baixo?
– Já vi que a senhora não é daqui perto! Aquele ladrão é o rio Douro, onde o meu Zeferino ganha o pão! Rouba-me a alma todos os dias e deixa-me aflita todas as noites! Anda cheio, cobre o campo da Redondela todo, é uma aflição! Quando for dia, vê-se melhor, agora a senhora vai dormir aqui, não está tempo para se andar lá fora de noite, e muito menos uma pessoa da sua idade. Amanhã logo se vê o que se pode arranjar!
Deitou-a na sua própria cama, aconchegou-lhe a roupa um pouco mais ao corpo e foi fechar a porta da entrada à chave, como fazia sempre que o marido estava ausente. Meteu-a debaixo do travesseiro e adormeceu tranquila e feliz, por mais uma vez ter ajudado um semelhante. Há povo fraterno e generoso em todo o mundo, mas este da beira do Douro surpreende, pelo tamanho do coração.
Na manhã seguinte, quando a claridade do dia entrou pelas frinchas do telhado, a Palmira levantou-se e foi certificar-se se a sua visita estava confortável.
A cama estava vazia, impecavelmente feita, como se ninguém tivesse dormido ali, mas da velhinha nem sinal. A chave continuava por baixo do travesseiro e seria impossível alguém passar pelo janelo.
A mulher estremeceu, era estranho o que estava a acontecer! E muito mais estupefacta ficou quando, vindo da cama da mendiga, lhe chegou ao nariz um cheiro a rosa que se espalhou por toda a casa.
Nunca se ouviu falar de semelhante criatura e, por mais que indagasse no lugar, ninguém disse ter visto pessoa que correspondesse à descrição da Palmira, e nestes tempos de Inverno, em Rio Mau quase ninguém passa.
O Zeferino regressou a casa no dia seguinte. Vinha assustado, a viagem tinha sido um suplício, num rio turbulento. E em Crestuma, o barco adornou e esteve à beira de naufragar, levando os barqueiros para as profundezas das águas.
– Estivemos perdidos, Palmira, vimos a morte à frente dos olhos, só rezávamos a Nossa Senhora! Até o Bico, aquele herege, se ajoelhou aflito!
Ela olhou o marido, comovida, sem dizer palavra. A julgar, coitadinha, que a Virgem Maria era aquela velhinha a quem dera guarida na noite anterior e o tinha salvo de uma morte certa.
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.