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A minha casa

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ÀS VEZES APETECE-ME percorrer outros caminhos, sair em busca de novas e excitantes aventuras, afigura-se-me que para além de ti, de tudo o que te rodeia, haverá um outro mundo à minha espera. Talvez que para lá destas montanhas que nos cercam, eu possa encontrar um outro rio, um novo paraíso, uma outra forma de viver que me faça ser feliz. Isto a propósito de que às vezes não me sinto bem onde estou. A minha casa já pouco fala comigo e está sempre a mandar-me embora. Compreendo-a, quem coabita como nós durante tantos anos, chega a determinada altura em que já muito pouco há para dizermos um ao outro. Já foi tudo dito e redito, nada de surpreendente acontece que mereça o gasto de palavras. Resta-nos deixar as coisas acontecerem por si próprias, esperar a hora em que o silêncio absoluto tomará conta de tudo, que a paz que tanto ambicionamos venha finalmente abraçar-nos aos dois. Antes dormíamos enlaçados, partilhávamos um espaço grande que por necessidade de aproximação, nos resumia a quase nada.

Tudo nos sobrava nesses dias felizes, a minha casa era nova e bonita, sonhava em vir a ser o centro de todas as atenções, a morada de uma família grande onde nunca se acabassem os sorrisos das crianças a brincar nas suas traquinices. Envelheceu, a família que teve e a fez feliz durante muitos anos, foi-se desarticulando; uns desapareceram para sempre outros mudaram-se para outras casas mais modernas. Eu também envelheci ao lado dela, perdi alguma alegria, o vigor que me caracterizava, a ambição e a força que me faziam correr para ela fascinado e eram o elo maior da nossa aproximação, o laço que nos prendia, julgávamos que para sempre. Ficamos os dois sós, a olhar-nos atónitos como se fossemos dois estranhos sem compreender por que se esgotaram as palavras e deixaram de se ouvir os sons de antigamente entre aquelas quatro paredes. A minha casa o lar que idealizei como se fora um ninho, ainda se pinta e enverniza, procura a todo o custo ressuscitar um tempo que passou, fazer-me interessar novamente pela sua arquitectura antiga, pelos seus traços finos e delicados indiferente à decadência que sabe inevitável. Olho-a comovido por lhe notar uma força de vontade quase heroica em contrariar os estragos que o tempo impiedoso vai fazendo nas suas fachadas. Sente-se abandonada e infeliz, julga que tudo poderá vir a ser como antigamente sem perceber que apesar de tudo é dela que gosto e é dentro dela que quero viver até ao fim dos meus dias. Às vezes pergunto-me por que foi que os meus ideais morreram dentro de mim, o que de tão devastador se passou durante a minha vida que foi capaz de enfraquecer a nossa fantástica união. Sei agora que podemos conservar intacta a agilidade da mente mas o resto do corpo dificilmente resiste à natural deterioração comum a todos os seres vivos. É como num jardim de outono onde as folhas vão morrendo lentamente para permitir que outras as substituam numa nova primavera. Nenhum de nós estará nesse despontar do futuro, por que ninguém é deste mundo.

Os meus livros aborrecem-me, metem-se comigo e estão constantemente a chamar-me nomes e a perguntar por que foi que os escrevi. Que devia ter sido assim, que era melhor se fosse assado, que deviam falar disto e daquilo, que se sentem sozinhos e que agora eu não lhes ligo absolutamente nada. Coisa de livros, o mal foi eu ter-lhes dado atenção ao ponto de se julgarem importantes. Eles desconhecem que nasceram num país onde quase ninguém sabe ler e que a maior parte dos seus amigos, repousam em prateleiras de livrarias, em sótãos de alfarrabistas consumidos pelo caruncho e que muitos outros servem apenas de decoração de fachadas de estantes onde passam os anos sem falar com ninguém e sem ter quem lhes pergunte o que é que guardam nos seus corações de papel. Tem dias em que a algazarra é tanta que mal consigo suportar as suas inquirições. Imagina que um deles chegou ao ponto de me questionar sobre literatura estabelecendo comparações entre ele e outros livros que tenho ordenados numa prateleira. Que eram muito melhores, que continham palavras capazes de mudar o pensamento e o mundo, que transmitiam mensagens inesperadas, enredos fantásticos, cenários de amor, que absorviam os leitores de tal forma que ficavam fascinados por eles, coisa que não acontece com os meus.

Que os títulos eram sugestivos, bonitos e bem estudados. Que as capas, qual montra de exposição de pintura, ostentavam desenhos abstractos e cores que chamavam a atenção de quem as via. Tentei explicar-lhe que os pais não escolhem antecipadamente os filhos, que é impossível determinar antes e durante o acto da concepção se vão ser altos ou baixos, lindos ou feios, perfeitos ou imperfeitos. Que só depois do nascimento aparece aos olhos de quem a concebeu, a obra na sua total amplitude. Nada se pode fazer para contrariar os desígnios da natureza, nascem e pronto, é o que vier. É também por estas razões que fujo da urbe inquieta e agitada e me venho sentar à tua beira.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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