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Ainda havemos de tomar um café juntos

Ainda havemos de tomar um café juntos

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NAQUELAS noites em que deitados lado a lado na areia da praia da Foz do Douro contemplávamos milhares de estrelas a brilhar no firmamento celeste, tudo indicava que a nossa relação de amizade era perfeita e que nunca mais iria ter um fim. Nesse tempo estávamos ali livres de todos os preconceitos que a sociedade cultiva, despreocupados a falar de coisas simples, a olhar o céu abóbada gigante que à noite produzia cenários encantadores dignos do reparo de todas as criaturas da terra e a permitir que a escuridão do firmamento fizesse os seus milagres, a ler um livro, a trocar impressões sobre literatura e arte em geral.

Eras uma rapariga linda, tinhas formas desenhadas a cinzel de escultor, feições suaves a decorar-te o rosto que parecia ostentar um sorriso permanente e eu via em ti um bibelô delicado feito com a mais fina porcelana chinesa a ornamentar uma mobília de século, um sopro de brisa de verão, um interlocutor que embora presente nunca interferiu nos devaneios da minha mente apostada na contemplação de coisas estranhas que não compreendia numa parceria de confiança que surgiu do nada. Se uma estrela te parecia brilhar um pouco mais que as outras, paravas repentinamente de ler e ficavas com o dedo indicador a marcar a página enquanto apontavas com um outro dedo para ela e me dizias:

– Até mesmo no firmamento há diferenças, repara que aquela estrela acolá resplendece muito mais que todas as que a rodeiam. Era verdade, o astro parecia ter dimensões desproporcionadas às suas companheiras, cintilava muito mais e parecia todo feito de fogo.

Eu ficava em silêncio um bom bocado e acabava por te responder recorrendo aos conhecimentos embora elementares que tinha apreendido nas aulas de astronomia na universidade:

– É simples Mariana, é por que ela está muito mais próxima da terra que as outras.

Não retorquias, aceitavas a minha resposta como certa por que eu significava para ti um mestre, um homem que sabia tudo acerca de tudo e, se muitas vezes não me interrogavas sobre outras realidades que te confundiam, era por que tinhas medo de ouvir a verdade e preferias ficar a conjecturar centenas de opções todas premeditadas, julgo eu para te satisfazer o ego.

O clarão das luzes artificiais do bar sobranceiro à praia chegava até nós, iluminava uma área restrita de areia fina onde estendíamos as toalhas lado a lado. A nossa ligação não tinha nada a ver com amor nem tão pouco com paixão coisas naturais entre dois sexos distintos, nunca dissemos as palavras banais e comuns a todos os que se enroscam num canto qualquer a curtir o fascínio e o ardor que provoca a aproximação de dois corpos apaixonados, era por assim dizer uma relação entre irmãos, sã e sem complexos de parte a parte, tu gostavas de vir para aqui à noite ler e olhar para o céu e eu também gostava, aliás foi aqui neste recanto que nos conhecemos, lembras-te? Isso já foi há muito tempo, todos os dias ao fim da tarde depois de cumpridas as nossas tarefas profissionais, sem que tivéssemos combinado nada antecipadamente, era neste sítio que nós nos reuníamos. Às vezes tu chegavas uns minutos antes de mim e outras vezes era eu quem antecipava a hora do encontro pensado que já aqui estarias à minha espera e não te queria fazer esperar muito mais tempo.

Foi assim durante alguns anos, uma espécie de peregrinação que fazíamos os dois a um local à beira mar, muito próximo do rio que os dois amávamos coberto por um céu estrelado e onde se ouvia o som das ondas a varrer a praia também visitado todos os dias impreterivelmente à meia-noite por um velho que vendia cachorros quentes.

Um dia deixas-te de aparecer, em princípio pensei que estivesses doente mas à medida que o tempo passava e tu não aparecias, percebi que me tinhas deixado para sempre. Nada que me surpreendesse, já não seria a primeira vez que me abandonavam apenas por que não correspondi às expectativas de entrega total e sólido futuro depositadas em mim. Como outras raparigas que conheci ao longo da vida, tinhas em mente um ninho, um projecto de vida seguro, a garantia de que independentemente de quem quer que fosse o homem que levarias ao altar, todas as tuas angústias e preocupações acabariam nesse dia. Não acabam Mariana, é um engano colossal por que se uma relação for baseada apenas nesses pressupostos, terá poucas probabilidades de sobreviver. Olha à tua volta, toma consciência dos dramas que acontecem todos os dias só por que as pessoas andaram mais interessadas em fazer negócios lucrativos com o futuro em vez de atenderem aos alertas sentimentais dos seus corações.

Lembro-me da última vez em que estivemos reunidos, tu usavas aquele vestido de cor pérola que parecia de seda e, quando encolhias as pernas, ele escorregava para a tua cinta e eu conseguia ver as tuas coxas morenas e os teus joelhos nervosos a baterem um no outro. Nessa altura se eu te tivesse colocado a mão na pele e fosse subindo, avançando pela sua aveludada macieza, tu deixarias de poder bater com os joelhos um contra o outro e aceitarias feliz essa caricia. Não sei se propositadamente ou não, tinhas desapertado os dois primeiros botões do vestido à altura do peito e, os teus seios firmes e redondos ficaram à mostra com os bicos apontados para o céu a contarem as estrelas como nós. Confesso que me incitei com essas visões mas foi por poucos minutos, a determinada altura comecei a pensar que tu tinhas uma esperança secreta de que eu acabaria por sucumbir aos teus encantos, notou-se mais quando viraste a cara para mim e, de olhos semi–cerrados, com o peito a arfar de uma maneira estranha, ficaste uns segundos à espera que eu te desse um beijo na boca carnuda e cor-de-rosa. Não dei, antevi que todo esse teu enfeitar não passava de um ataque quase irrecusável à minha liberdade. Insististe no namoro por mais alguns minutos e terminaste a dizer-me:

– João Paulo, por este andar ainda havemos de tomar o café, juntos.

Fiquei calado, não sabia o que querias dizer com “este andar” e, até ao dia de hoje não respondi à tua observação nem o podia fazer sem ter de te magoar. Não te disse mas gosto de tomar o café no silêncio matinal da minha cozinha desordenada, com a louça do almoço e do jantar do dia anterior empilhada em cima da banca por que eu vou recorrendo ao armário e enquanto houver lá dentro peças lavadas, não reciclo a usada, faço-o quando a mão procura um prato ou copo e não encontra nada dentro do louceiro. Depois também irias ver peças de roupa suja espalhadas por todo o lado, a cama por fazer, livros desarrumados no chão, o urso de peluche que conservo desde criancinha e que dorme aos meus pés todas as noites, tudo coisas de que tu não irias gostar nada. É a face oculta da minha indisciplina doméstica, sou dentro de minha casa tudo o que não posso ser no mundo lá de fora onde a liberdade individual está comprometida por regras e convenções supostamente criadas para facilitar o bem-estar colectivo.

Já passaram quatro anos desde essa última vez, imagino-te casada com um sujeito qualquer que aceitou tomar o café contigo depois de te ver as coxas morenas e os seios a apontar para as estrelas e que provavelmente agora adormece no sofá com a televisão ligada enquanto tu lavas ou passas a ferro as tuas roupas e as dele ou ponteias as meias que o teu homem rompe nos tornozelos por ser desajeitado no andar. Já não deves poder sair à noite e vir aqui apreciar as estrelas e ler deitada de barriga para o ar na areia, tens de ir ao supermercado buscar mercadorias para abastecer a dispensa enquanto ele vai abrindo latas de cerveja e prepara as tarefas do dia seguinte no computador. Durante o dia deves andar ocupada, não te sobra tempo para tratares de ti e apareceres ao mundo com o ar descontraído e gracioso que eu te conheci, foste apanhada nas malhas da sociedade moderna e quer queira quer não, tens de cuidar dos teus afazeres domésticos que te transformam numa coisa parecida com uma máquina de servir hambúrgueres. Aposto que já nem usas o vestido de cor pérola que parece de seda e que te assentava no corpo como uma luva e se vestires, já não o deixas escorregar nas pernas até cá acima à cintura descobrindo as tuas coxas morenas nem os teus joelhos batem um contra o outro nervosos. Já não deves ter interesse em mostrar a tua fantástica anatomia corporal porque ninguém como eu te admiraria como se fosses uma magnífica obra de arte sem te cobiçar as formas do corpo descaradamente.

Quantos anos terás agora Mariana, deves andar nos quarenta, tenho ideia que me disseste nesse tempo que tinhas trinta cinco ou trinta e seis. Não é muito, eu tenho um pouco mais e ainda não senti necessidade de tomar o café junto com ninguém. Talvez eu seja uma pessoa medrosa, insegura quanto a ter de partilhar a vida com uma mulher. Se calhar já a reparti contigo nos momentos em que, deitados na areia lado a lado, falava-mos de coisas simples. Sinceramente não sei, o que te posso dizer neste momento é que sinto a tua falta aqui ao pé de mim. Se estivesses aqui hoje, haverias de sentir as minhas mãos quentes a percorrer sem qualquer receio a estrada ondulante que me mostravas nesse tempo, arredondando as tuas curvas, deslizando suavemente sobre a pele do teu ventre desvendando os recantos que tu abrigas na mais funda intimidade até que um gemido mais profundo anunciasse a a chegada da tua onda de prazer. Nunca trocamos os números dos nossos telemóveis, não era preciso, a gente via-se todas as noites mas agora não te posso ligar a perguntar como vai a tua vida e tu também não me podes telefonar a perguntar se o velhote dos cachorros quentes ainda passa por aqui à meia-noite e se o bar da praia por baixo da escultura do Homem do Leme, continua a estar aberto até às duas da manhã.

Sabes por que me lembrei de ti hoje Mariana?

Como sempre acontece, estou aqui deitado na praia a olhar para as estrelas e aquela que tu dizias brilhar muito mais que as outras todas, não pára de olhar para mim e de dizer:

-Ainda havemos de tomar o café, juntos!

Publicado originalmente in Fado Falado

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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