A ALVORADA acordou timidamente neste imenso vale do Douro. Uma espécie de neblina envolvia toda a paisagem e a capela de S. Domingo adivinhava-se no alto do monte por dentro do denso lençol de algodão que se tinha instalado durante a noite. As serranias em volta ocultaram-se da vista, apenas se vislumbrava a silhueta do rio e a povoação de Pedorido era um quadro abstracto à frente dos meus olhos; encoberto, difuso e molhado.
Das chaminés do casario de Rio Mau saia um fumo preguiçoso que evolui lentamente no espaço do ar por alguns instantes para depois se diluir na acentuada humidade da atmosfera. O cheiro da terra era intenso, acre, misturado com o perfume das urzes e do rosmaninho que o vento trazia das serras em volta. Madrugadores os galos desatavam em cantilena na rua do Lugar e, os da rua dos Estercos responderam afinados muito antes de terminar o monótono e nostálgico eco na colina de S. João. O sino da igreja de Santa Eulália em Pedorido, badalou dolente as sete horas da manhã. O som do bronze ficou a pairar por alguns instantes no desolado cenário e depois perdeu-se melancólico nas quebradas dos montes.
Bateram sete horas da manhã no sino do campanário mas não acordaram ninguém; já há muito que o povoado mexia, acordou cedo porque o pão não se ganhava aqui, era preciso procurá-lo longe, nas beiras da cidade do Porto onde proliferavam indústrias, serviços e comércios ou então na banda de lá do rio na sinistra indústria que das profundezas do subsolo, desenterrava enormes pedregulhos de carvão.
Na Lingueta, espécie de rampa de varar que ainda hoje desce até mergulhar na água por baixo de Fornelo, viam-se encostados uns aos outros os barcos Rabões que carregados com o precioso combustível, iriam partir numa viagem até Campanhã pelo rio abaixo e, as silhuetas escuras das enormes embarcações, assemelham-se a cascos de túneis de vinho a boiar na água.
Campanhã é longe, fica nas periferias do Porto e a descida do rio até lá, é vertiginosa, às vezes basta o homem da espadela guiar o barco e algumas pás a tentear o mesmo não fosse acontecer surpresas degradáveis. Aproveitando o vento de sopé, armando a vela de Traquete à frente, outras vezes com a maré na preamar, era custoso arrastar à força de braços cerca de cem toneladas de madeira e carvão antracite.
A subida era sempre terrível, penosa, desgastante e desumana. Os barqueiros esperavam o vento da barra que enchia as pardas velas de pano cru. Armado o mastro no Terço do Meio e vela Quadrada enfolada que aliada aos homens lá iam fazendo de tudo para amenizar o penoso esforço, atentavam a viagem.
Nos caroços, sítios no onde a Quilha e o Sagro dos barcos arrastavam no fundo do rio, era muito difícil de progredir. Aí três homens saltavam para terra descalços nas escarpadas pedras da margem, munidos com uma corda presa há embarcação, puxavam à frente desta enquanto a sirga esticada lhes ia provocando feridas nos ombros. As pedras de xisto desde há muito sulcadas com profundos regos feitos pelas cordas a raspar, cortavam-lhes os pés nus deixando as chagas abertas a cicatrizar ao tempo. Outros de vara de Carregar fincada no peito, escorregadia e lisa, que as mãos dos barqueiros já lhe retiraram as farpas cravando-as na carne e lhes fazia uma mancha calosa no ombro do outro lado do coração quando a espetavam no fundo do rio e caminhavam de pés desprotegidos desde a proa até à ré curvados para a frente como se fossem animais possantes. Num tremendo esforço, agonizam em cada minuto que passa.
Nos dias de cheias o Douro transtornava-se e, como um louco apressado em chegar à foz, parecia e que levava consigo a força de todos os demónios. Porém, nem mesmo assim os barqueiros o temiam, entregavam-se com ele a uma luta de morte e tão desigual que parece até ser impossível ter acontecido. Davam-lhe tudo, o suor dos corpos, o sangue das veias e até própria vida se necessário fosse. Ficavam doidos como ele, alucinados por uma paixão dominadora e sem precedentes na história de toda a navegação deste rio, desafiavam aquela monstruosa fúria sem arredar pé. Tudo isto apenas em troca do pão que lhes faltava em casa e da legitima aspiração por condições de vida digna, numa entrega total a uma afeição demasiado infame para ser considerada amor. Todavia, era-o porque um barqueiro que se prezasse de o ser, não poderia viver sem este rio e estou em crer que esse amor era reciproco. Barqueiros, barcos e rio, um triângulo de afectos.
Que degredo aquele! Que morrer em leito pobre, é mil vezes mais justo e mais digno. Que crueldade horrenda se praticava neste magnífico vale do Douro onde crescem flores e o sol ilumina transformando-o num jardim.
Eram tantos a sofrer tão desditosa sorte. Vinham dos mais diversos destinos; Espadanedo, Couto, Escamarão, Bitetos, do Castelo, Sardoura, Pedorido, Melres, de Rio Mau e de outros mais longínquos sítios onde a lusitana febre marinheira conseguiu chegar e fecundar corações. Todos irmanados do mesmo sentimento de uma solidariedade ímpar, tratavam-se por companheiros estabelecendo entre si laços de verdadeira fraternidade. As refeições eram comunitárias, a mesma panela cozinhava os caldos que todos haviam de comer com o mesmo garfo ou a mesma colher. A dor de um transformava-se sempre no sofrimento de todos e mesmo assim era tão pouco o bem-estar. Por mais união que existisse, seria impossível transpor as barreiras de uma pobreza quase extrema. Se um ou mais deles era pobre, os outros eram paupérrimos. Se alguns tinham de alimentar três ou quatro filhos, os outros tinham de alimentar e cuidar de um bando que em alguns casos chegava aos treze. Em cada uma dessas vidas, viesse o diabo escolher a melhor. Todavia sorriam, sempre que a vida os tolerava, manifestavam uma réstia de alegria que docemente acalentavam no peito. Dava-me gosto, consolava-me vê-los e ouvi-los altas hora da noite deitado na cama com os meus dois irmãos no andar por cima da taberna. Em tempos de calmaria por entre abraços fraternos a facilitar liberdade a esse minguado consolo que de vez em quando despontava nos seus corações inocentes. Então no apogeu do que parecia uma imensa felicidade, saia uma desgarrada acompanhada pelo enfeitado e suave som de uma viola braguesa e pelo delicioso ritual do passar da caneca do vinho verde tinto de Castelo de Paiva de mão em mão. Era quase sempre o Constantino a abrir a contenda enquanto os dois irmãos, os Canecas, incitam os outros ao inofensivo despique:
Que lindo é o berço sagrado.
Que lindo é o berço sagrado.
Que me criou e alumia.
– Aqui a viola braguesa faz dois compassos.
Que me criou e alumia.
Entre beijos e abraços.
Lá vim eu à luz do dia!
O melancólico, arrastado e bizarro dedilhar do instrumento enchia de festa o espaço e a noite. Dois lampiões a petróleo esforçam-se por iluminar a taberna da ti Albertina (minha mãe) oscilando vagarosamente dependurados no tecto por entre dois cabos de cebolas, um ramo de loureiro e presuntos que, juntos com os efeitos de tosca contraluz, davam às paredes de caliça, umas formas bizarras e fantasmagóricas transformando o local num sítio castiço e num ambiente acolhedor. Agora entrou o Malhado a matar:
Ó cantador afamado.
O cantador afamado.
Aprecio os teus cantares.
– Outra vez a viola dolente.
Aprecio os teus cantares.
Bem puxas pela goela.
Mas não me chegas aos calcanhares!
Estava lançado o mote que serviria de tema aos cantares desafiadores dessas figura memoráveis. Como dois galos em capoeira, lá se iam crispando no fazer de cada quadra transformando a noite num momento alegre e de sonho. Lá fora a escuridão orvalhada e fria ouvia a insólita desgarrada agasalhando-os com o seu manto de caridoso silêncio. Mais tarde já consolados da vida, ficavam em alegre e amena cavaqueira pela madrugada dentro.
Sentado na caixa que guardava farinha de milho disposta a um canto da taberna, o Zé Esperança enfiava o focinho na caneca do vinho tinto bebendo em grandes goles o delicioso néctar de Baco. Meio vivo, meio morto, escutava fascinado as narrativas dos barqueiros que falavam de tudo e de nada contando entre si, algumas histórias de valentia que decerto nunca chegaram a viver. Transformavam-se em heróis repentinamente e no meio daquele punhado de homens, ninguém ousava desmentir ninguém. De olhos espantados, ouviam as narrativas dos feitos uns dos outros como se fosse a primeira vez e, no entanto, eram antigos, recontados por dias e noites semelhantes aquela alterados aqui e ali conforme a imaginação de quem os contava. Gesticulavam ao sabor dos contos, ora as mãos se cruzam no peito piedosamente ou como quem ama e sofre, ora assumiam contornos de luta como quem desfere mortal e certeiro golpe de espada afiada. Os companheiros sentados ao longo do comprido banco da tasca, ou se chegam à frente para ouvir melhor nos momentos em que a voz parecia vir de muito longe e era só um sussurro, ou então recuavam transidos de medo daquelas ameaçadoras mãos em riste. Comungavam todos a mesma hóstia sagrada do irreal e do fantástico que chegava a assumir contornos de verdade autêntica. Mas não, eram apenas desabafos, pedaços das almas mutiladas de barqueiros, dos marinheiros da famosa Esquadra Negra que já tarde, felizes e alegres regressavam aos seus lares abraçados uns aos outros.
O último a abandonar o tasco foi nessa noite fatídica o Zé Esperança; manco de uma perna há muitos anos, cambaleava ao tentar arrastar-se até à barraca distante
onde vivia sozinho. O velho Zé parou ao cimo da costeira e a muito custo tentou reconstruir um cigarro forte que trazia meio desfeito no bolso da samarra. A chuva tangida por um vento forte ia ensopando as roupas do velho desgraçado que perdido no meio das trevas ensaiava um princípio de canção:
– É tão bom ser pequenino,
ter mãe ter pai, ter avós.
Ter esperança no destino
e ter quem goste de nós
Parou de repente. Decerto já não sabia o resto da letra da bonita melodia ou então era a emoção que não o deixava avançar. Grossas nuvens de fumo apareceram-lhe da boca que cheirava a vinho tinto e a caldo de couves. Lá ao fundo da escarpada encosta, corria sereno o rio Mau. Cambaleando inseguro, o Zé retomou a estranha marcha mas já não havia controle de nada. O corpo cedia em cada passada e as pedras soltas do carreiro, impediam qualquer progresso. Caiu desamparado no chão e rolou pela encosta pedregosa como se fosse uma pedra lançada em ribanceira e lá em baixo arrastou-se penosamente por entre os pedregulhos e só muito a custo conseguiu chegar à miserável habitação onde vivia. Adormeceu e sonhou não se sabe com quê, talvez com a mãe que perdeu aos cinco anos ou com o pai que nunca conheceu. Na manhã seguinte encontraram-no morto na enxerga molhada. Olharam pelo postigo e reparam que o sol lhe iluminava o rosto sereno já sem vida.
Conta-se que, ainda hoje, quem passa a horas mortas da noite naquele local junto ao rio Mau, tem a sensação de ouvir as águas a cantar:
– É tão bom ser pequenino, ter mãe, ter pai, ter avós ter esperança no destino, e ter quem goste de nós…
Publicado no livro Douro Inteiro
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.