ATRAVESSEI o rio Douro no barco valboeiro do Zé Chasco. Aquele pedaço de madeira artisticamente trabalhada pelas mãos do Ti Arnaldo, artífices da construção destes navios, flutuavam com a doçura própria das coisas mais belas e mais simples deste mundo. De vez em quando lançava um olhar cúmplice ao barqueiro, somos amigos, une-nos o mesmo espaço da nascença, horas de convívio, a partilha de horizontes e o rio. Ele trazia preso atrás de uma das orelhas um raminho de alfádega também conhecida por manjericão de folha larga que exalava uma fragrância inimitável ao espalhar-se por entre as ritmadas braçadas que empurravam os remos, impulsionando a embarcação.
Nisto começou a assobiar uma modinha de outros tempos, melodia popular difundida nos alto falantes das festas a S. João e a Sto. António padroeiros das duas margens, um em cada freguesia, em cada lado do rio. O barco que progredia garboso sobre as águas tranquilas, os barcos são também matéria sensitiva, antes foram árvores, antes foram vida, este era um cisne de cores matizadas que passava, a levíssima pena que se soltou de uma graciosa ave, um elo forte da corrente da nossa história como povo ribeirinho a tentar manter-se à superfície da memória.
O barqueiro, o rio, o barco e todas as recordações da juventude a navegar nesse final de tarde de Setembro, à hora do crepúsculo quando o céu parece feito de água colorida e ondula ao ritmo de suaves carícias a que um sol moribundo dava cor como se fossem as mãos dos namorados a tactear os mais íntimos lugares dos corpos, no viver uma grande e saborosa paixão. Os remos penetravam macios no espelho da água rasgando reflexos únicos, constelações de rostos de gente que já partiu e que são agora apenas esse estrelejar de luz a caminhar sobre o rio levados pela mão de um Deus misericordioso e Omnipresente que nunca nos deixa ao abandono mesmo depois do fim dos nossos dias.
Se eu pudesse reter em mim um único desses instantes de magia que vivi, talvez me transportasse para lugares onde a palavra amor ainda existe no seu pleno significado ou deixasse de ser a sombra que involuntariamente escurece as horas de alguns, réu sem crime provado, consolação de espíritos menores. O simples acto de existir obstaculiza o progresso da luz de outros seres menos capacitados e menos preparados de espitito para serem claridade, espaço de encontro fraternal com os outros, criaturas de cristal cintilante que tal como a preciosisima pedra, não intervieram no acto de vir a este mundo.
Chegamos à outra banda do rio, o valboeiro atracou serenamente ao lado de um outro barco semelhante que foi o batel propriedade do já falecido Gonçalo (Padeiro) e ainda ali permanece à espera de se juntar a ele um dia num outro paraíso tão ou mais belo do que este onde também há barcos e as pessoas se fazem felizes com as suas próprias mãos. É aqui o “Vinte e Nove” conhecido familiarmente por todos os que habitualmente o frequentam, mas o seu verdadeiro nome comercial que faz justiça à toponímia do sítio, é “ Jardim do Arda e nesse dia fazia lembrar uma das fantásticas esplanadas no Mindelo em Cabo Verde numa noite clara e quente de fim de verão que recordava o místico e inimitável esplendor africano.
A harmonia melódica que um morno vento transportava, era puro sentimento transmitido através das colunas de som que o estabelecimento disponibiliza nos serões estivais a todos os que se refugiam na frescura do recanto, formado pelas águas do rio Douro ao penetrar no rio Arda criando um estuário paradisíaco enfeitado por uma floresta de maravilhosas e frondosas árvores povoadas por centenas de pássaros que cantam ao amanhecer. Sitio aprazível, único na margens esquerda do Douro desde a foz até Barca de Alva, congrega na sua propositada simplicidade, a tradicional cozinha portuguesa servida em mesas de granito dispersas ao longo do médio recinto onde dezenas de patos selvagens que nidificam nas margens dos rios, frequentam diariamente em busca de amistosas sombras e complemento alimentar disponibilizado como generosa oferta pelo Zé Pinto o omnipresente Senhor do “Jardim do Arda”.
A voz da saudosa e imensa cantadeira, evoluía suave e enchia a noite toda de cheiros com sabor a África combinado na perfeição com a doçura mística do romance de que os povos latinos sabem melhor que ninguém produzir, era um lamento nostálgico, um suave e brando clamor que entontece, nos faz estremecer e nos deixa prostrados nas mãos da essência mais pura que amor pode ter ao espalhar-se perfumada por sobre os vapores nocturnos das adormecidas águas dos dois milenares rios transformando-se apenas num rumor, quando já desfalecida chegava à margem direita do rio Douro:
Bésame, bésame mucho,
Como si fuera esta noche
La última vez.
Bésame, bésame mucho,
Que tengo miedo a tenerte
e Perderte después.
A música era uma adaptação belíssima à lânguida e dolente Morna Caboverdiana, uma espécie de feitiço insular criando lá longe nas dez ilhas abençoadas na África Ocidental protegidas pelo Oceano Atlântico Central que as cerca com água salgada e fornece uma substancial parte do alimento àquele povo.
A noite progredia saborosa e bela, mais um dia terminava em agonia lenta e um outro despontava já em tímidos alvores que uma clara lua gigante fazia chegar em banhos de misteriosa luz, e aos pouco, ia desvendando os segredos da dança nocturna a decorrer no centro do terreiro que tem uma chafariz a aspergir continuamente água doce num lago que guarda dentro dele a escultura quase perfeita de um barco Valboeiro, imitação que recorda as tradicionais embarcações de pesca e transporte usadas aqui e numa parte significativa do rio Douro.
Eram poucos os pares que evoluíam enlaçados no sereno da noite abraçados ternamente num estreitamento tal que os faziam parecer um só corpo a descrever reduzidas acrobacias de sonhos nas lentas, abstraídas e raras passadas do baile, sempre em redor de si próprios. Eu, hoje solitário passageiro da nave dos que procuram mais luz, não tinha par a quem enlaçar pela cintura sentindo-lhe o respirar tumultuoso que as mais doces emoções provocam num ser, era um espectador atento a recordar momentos que nunca mais volta a viver:
Quiero tenerte muy cerca,
Mirarme en tus ojos,
Y tenerte junto a mi.
Piensa que tal vez mañana,
Estaré muy lejos, Muy lejos de ti.
São poucos os que conhecem as fascinantes histórias que o amor vai contando pelas margens dos rios que por ali passam. Muito do que se nos afigura como realidade objectiva, não passa de mera ilusão ou instrumentalização provocada às nossas mentes por estranhos que nem amar sabem, mas o coração vai moldando os sinais dos afectos que perdemos na labuta diária para assim modificar os lugares mais recônditos dos nossos cérebros e nos fazer sentir verdadeiramente humanos e à mercê das mais autenticas e puras emoções. Os casais que bailavam agarrados no improvisado anfiteatro, pressentiam o colapso da belíssima canção que a voz única de Cesária Évora divinamente interpretava e, nesses derradeiros instantes musicais em que a melodia mais de perto lembra as afeições, os lábios deles colaram-se docemente por impulso e pareceu-me ver por entre a vasta folhagem das árvores, berçários de dezenas de pequenas aves que escutavam a afável serenata, um ramalhete de beijos a navegar no rio:
Besame, besame mucho
como si fuera ésta noche
la última vez
Besame, besame mucho
que tengo miedo a tenerte
e perderte después…
Seguiu-se o silêncio que nos rouba a alma quando se apagaram as luzes no terreiro da festa. Nas árvores frondosas que dão luz verde ao sítio, os passarinhos felizes, aconchegavam-se íntimos e eu, único passageiro de uma outra barca que não pertence aqui, atravessei o rio na direcção oposta aos apelos da música e voltei a ser apenas um microscópico grão de poeira estrelar de regresso aos lugares onde já ninguém me espera mas os únicos onde sei que ainda sou lembrado com alguma saudade.
“Inéditos” de Manuel Araújo da Cunha
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.
Sensacional , muitos parabéns pela sua escrita que nos delicia e nos leva a ler e reler …fantástico !
Um inédito a merecer ampla divulgação. O artífice da palavra, Manuel Araújo da Cunha, nome sobejamente conhecido por quem esteja atento aos amores e desamores deste Douro belo, simples e simultaneamente grandioso, por onde perpassam ventos mornos em suaves carícias, assim o exige. Parabéns a este autor gigante. Um dia, o Douro há-de chorar por ele. em forma de cantata. Grande abraço.
Beija-me. Beija-me muito. Como só tu sabes beijar, a noite, o rio, a música, as paisagens daqui e de Cabo Verde, os passarinhos e naturalmente, os privilegiados maiores deste conto que somos nós. Por momentos somos os que estão enlaçados, por aquela música quente saída da alma da Cesária, no contraste com a frescura do rio, valboeiros que não medem distâncias, quando o cais é o paraíso. E viajamos sempre nas tábuas rangentes do barco do “Chasco” porque a narrativa nos impregna e impõe, ditadura natural das rugas, dos calos nas mãos, na visão precoce do ritmo ondulado das águas, do nunca mais parar de que é feita a vida.