QUEM vem dos lados da cidade do Porto pela sinuosa e pitoresca Estrada Nacional 108, marginal ao rio Douro, após ter percorrido uma distância de aproximadamente vinte quilómetros, é surpreendido pela extasiante beleza da paisagem que, inesperadamente, surge aos olhos do viajante e se estende desde São Tiago de Melres até Entre-os-Rios.
A tortuosa via rasgada numa grande extensão na rocha de xisto, vai alternando com o granito que aparece já depois de se passar Sebolido, precisamente por alturas da Quinta de Santa Cruz, e continua a dominar grandes frações de terreno, até se chegar à cidade da Régua.
Passa-se a povoação de Branzelo, edificada no sopé da Serra de Santa Iria e, de repente, abre-se um cenário belíssimo aos nossos olhos, onde a extensa massa líquida domina e garante o encantamento que preenche de luz o maravilhoso panorama.
Também rápido, surge lá ao fundo do acentuado barranco que demarca uma maior proximidade ao caudal do rio Douro, a povoação de Melres, a trasbordar de verde formosura durante centenas e centenas de metros. Na outra banda do rio, vislumbra-se a freguesia da Lomba e a pequena aldeia de pescadores, denominada de Pé de Moura, desvenda-se ao longe, a jusante na mesma margem do rio.
Mais uns escassos quilómetros e volta a configuração paisagística a surpreender quem viaja. O o cenário altera-se ou repete-se com a mesma intensidade de lindeza do percurso anterior e durante um persistente sobressalto que comove, aparece Rio Mau, freguesia e aldeia que foi de pescadores e mineiros erguida na confluência dos rios Mau, que lhe dá o nome e do Arda que banha a freguesia de Pedorido na margem esquerda, mesmo defronte a Rio Mau, e se fundem num abraço milenar com as águas do Douro.
É soberbo o quadro que nenhum pintor conseguiria retratar pormenorizadamente na mais sublime de todas as telas, pelo excesso de beleza e diversidade que contém, onde o espelho de água é a macha viva mais presente na natural maravilha da pintura.
Por instantes, a estrada afasta-se do rio para imediatamente, um pouco mais à frente, a freguesia de Sebolido afirmar a sua centenária existência, num outeiro sobranceiro ao rio Douro, protegido pela enorme massa rochosa das fragas da Abitureira e dos Penedos da Sombra, esculturas talhadas em xisto pelas mãos dos ventos, que são dois seixos gigantescos a ameaçar as casas que tentam inutilmente subir a encosta que antecede o cume da serra da Boneca.
Cancelos supõe-se nas funduras do profundo vale. A pequena povoação mergulha a pique por entre pedregulhos soltos, matos e árvores, até quase tocar na água onde fica a contemplar o soberbo prodígio que todos os dias ajuda a criar.
Já não é a terra de pescadores que foi num passado distante. Pouco ou nada nos faz lembrar os dias e antigamente. Só o sítio se mantém na paisagem. Recentemente, deixou cobrir o xisto das suas casas com materiais modernos e até as coberturas de lousa que lhe emprestavam a graça de outrora, foram substituídas por novos telhados de cerâmica de barro.
A configuração do pequeno povoado que presentemente poucos dos seus habitantes alberga, alterou-se por completo. É um conflito de gerações ao vivo, uma amostra aflitiva daquilo que descaraterizou os povoados e vilas de todo o país, nos últimos anos.
As razões são objetivas por justas, desculpam por isso as escolhas dos novos habitantes. A terra de fome e de pobreza onde poucos sobreviviam com o produto da pesca no rio Douro, e que viu partir para o litoral em busca de melhor vida a maior parte dos seus filhos, vingou-se do desprezo de longas décadas em que foi completamente esquecida pela autarquia de Penafiel a que pertence, ao ponto de nem o acesso por caminho lhe terem modernizado ou construído um novo de raiz, obrigando aquela gente a sacrifícios horríveis para chegarem ao centro da freguesia onde enterravam e continuam a enterram os seus mortos, ou para assistem a missas e outras a cerimonias religiosas.
Eram carreiros de pedregulhos soltos que se estendiam desde a presa de Junçadelo, situada em frente às portas fronhas da entrada da quinta da Moira, cruzando pela fonte da Preguiça, até esbarrar com o rio num pequeno areal onde predominavam os barcos Valboeiros usados na pesca e transporte de pessoas e bens, que ali dormiam sestas eternas.
Lá no fundo, da outra banda do Douro onde o lugar de Midões sobrevive e pouco a pouco se vai também descaraterizado com modernidades, os nossos olhos perdem-se no imenso lençol de água em que se transformou o rio após a construção da barragem de Crestuma Lever. Não haverá certamente sítio de semelhante beleza ao longo deste enorme caudal. A austeridade das feições dos rochedos e dos montes em redor, assustam e comovem quem por ali passa em direção a montante, onde os esperam as prodigiosas terras do Alto Douro vinhateiro.
Um barco Valboeiro balouça no pequeno cais, ao sabor do vento. Na outra banda, mais alguns exemplares acompanham o ondulante bailado. Parece que o passado ainda agora viaja nesses pequenos botes de madeira e, num boiar incerto, acontece a ressurreição de todos aqueles que neste anfiteatro viveram durante muitos séculos a usar as artes piscatórias nos areais que o rio tinha. E se olharmos com a devida atenção, havemos de reconhecer pelos rostos de cada um dos membros das tripulações desses barcos, o Ti Albano, o Ti Manel Barqueiro, a Ti Laurinda, a Emília, o Banito ou o Valdemar Marinheiro, o mais recente dos proprietários e remadores de Valboeiros que, apesar de já residir no litoral, ainda para aqui vinha, antes da morte o surpreender, animar as artes antigas.
Lembremos com estima as memórias de todos os nossos antepassados que repousam lá em cima no centro da terra, no cemitério comum ou, como aconteceu com Valdemar, ficaram enterrados em outros lugares para onde a vida os levou na fuga á pobreza em que viviam neste jardim de tão rara beleza. Todos pobres depois de ricos ou remediados, porque quem perde a suas origens, perde tudo, não tem mais nada a perder
Amanhece em Cancelos, o sol é ainda o mesmo do passado, aquece ilumina este abrigo situado na margem de um rio de extraordinária beleza onde paira o silencio e a tranquilidade. Não se vê vivalma a passar nos caminhos agora calcetados a granito. Nenhuma voz humana agora grita:
– Barqueiro!
E se gritasse, não seria ouvida por nenhum dos vivos. Neste espaço ribeirinho outrora populoso, nem o ladrar de um só cão se ouve ou o aveludado caminhar de um gato sobre as paredes que delimitam as propriedades. Decerto desapareceram todos, animais e pessoas. Alguma coisa de muito grave aconteceu aqui para deixaram as casas, as redes, as pás, os barcos e a sua terra natal entregue a estranhos, que provavelmente nunca irão pescar, remar ou sequer navegar.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.