A CASA olha o horizonte do rio que se estende à frente dos seus olhos e lembra-nos que foi ela o ninho onde cinco avezitas aguardaram ansiosas o seu primeiro voo.
Hoje silenciosa, ainda conserva intactas, dentro da sua fisionomia arquitetónica, as memórias dos tempos em que juntos brincávamos em seu redor e enchíamos de alegria o limitado espaço interior decorado com bonecas, jogos, carrinhos e muitos outros brinquedos que o pai-natal ia deixando nas bordas da lareira na madrugada do dia em se comemora o nascimento do menino Jesus.
As palavras que em catadupa anunciavam a presença humana em todos os recantos da vivenda, ainda pairam em alguns lugares da casa da colina:
– Conta uma história avô!
Todos sentados em roda nas tijoleiras do pátio, processavam a informação sobre as fainas do rio que, como se também fosse uma criança pequenina, abrandava do seu eterno caminhar e ficava horas parado no leito a ouvir com toda a atenção as fantásticas narrativas.
Era dele que falávamos, sabia-o. Notava-se a sua satisfação e alegria, no rendilhados de espuma que corriam pelo seu rosto e que vagarosamente se perdiam na corrente para os lados da cidade do Porto:
– Faz uma magia avô!
E nas minhas mãos, por artes que eles não compreendiam, surgiam pastéis de nata ainda mornos. Nesse tempo fui um ilusionista por necessidade, sem dotes para a arte da ilusão, apenas conseguia fazer aparecer os pasteis de nata comprados antecipadamente na confeitaria do meu amigo Cardoso.
O avô é fixe! Diziam uns para os outros.
Aos olhos das crianças somos todos fixes, ao contrário dos adultos, elas também vêem com o coração, e na pureza que só os anjos conseguem ter, percebem que há sempre uns restos de bondade dentro de qualquer um de nós:
– Vamos ao fundo da rua?
De mãos dadas, o bando e a cadela laica à frente a saltitar feliz, percorríamos a pé a curta distância a que ficava o final da rua dos contos.
E o tempo passou, os passarinhos, um a um, levantaram voo. A escola reclamou-os, mas quando menos se espera, surge um rebuliço conhecido e todos eles, voltam a sobrevoar o ninho onde cresceram.
Um dia prometi-lhes:
– Havemos de voltar a ser água pura a correr nas vertentes das mãos de longínquas primaveras que, água apenas, substância líquida transparente, sacia sedes e gera a vida. Havemos de ser outra vez aves e voar ao encontro dos lugares onde ainda é possível um passarinho ser feliz
Este silêncio que a memória agora inunda, arranca a vossa imagem de entre as pedras vivas da imaginação literária, e a noite não me amedronta, é escuridão apenas, tempo reservado à meditação, espaço de recolhimento de quem muito amou um dia os caudais do rio, onde os barcos anoitecem sozinhos.
Como posso salvar-vos, se não tenho a luz que cura as feridas mais profundas do universo, para permitir que toda a aparente ausência de claridade, vibre como clamoroso esplendor em redor de vós? O que posso fazer mais quando já quase vencido pelos anos e pelas adversidades da vida, a lua apedreja os meus caminhos e a terra sedenta de paz, absorve toda a água das chuvas, inundando como se fosse um imenso caudal as vossas almas de gaivota, porque nunca foi em vão nascer nas margens de um rio como o Douro?
A voz ensurdecedora do silêncio, ressuscita uma a uma, as flores dos tempos que passaram e, como eu já o sou agora, voltareis um dia a ser as crianças felizes da meninice.
Brincai nos jardins da lua de papel, onde a vossa tenra imaginação mora cercada de água, barcos e de flores. Prendei-vos às bonecas de trapos com que, num determinado tempo das vossas vidas, partilháveis confidências, contrariedades e alegrias, fantasiando outros mundos e recordando os dias felizes que passaram, sonhando com muitos outros que hão-de vir. Salvai-vos deste mundo de injúrias permanentes, coberto de sombras, longe da herança social da humanidade, ameaças a pairar constantemente sobre a terra.
Transformai o mundo com as vossas próprias mãos. Abraçai os indescritíveis espíritos alados do rio e das montanhas que, na invisibilidade dos olhos humanos, cuidam das aves, das águas, das árvores, das flores e de todos os seres vivos. Cobri-vos de luz, desta claridade que é um bailado do sol a namorar o rio em cada amanhecer, e subi ao consolador céu da memória, onde repousam os dias e as horas já vividas, meu muito amado par de anjos verdadeiros!
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook, Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.