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Chico Marta

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QUEM é Deus!?

A pergunta estalou na sonolenta quietude de uma longínqua tarde de Verão e o eco explodiu nos vitrais coloridos da igreja de S. Paulo em Sebolido e mais pareceu um ribombar de trovão produzido pelas cordas vocais do padre Vasconcelos:

– Quem é Deus? repetiu o sacerdote de pé limpando o suor da testa com um lenço que retirou das calças introduzindo a mão na ranhura lateral direita da batina negra que lhe chegava até aos pés.

No meio de todas as crianças sentadas em círculo no chão do templo ninguém sabia a resposta, só o Chico Marta ousou explicar:

– Deus é o meu pai!

Aquele som arrastado saiu-lhe com dificuldade da garganta assemelhando-se a um roufenho grito agonizante. Os olhos pequeninos apareceriam e desapareciam por entre um pestanejar nervoso e rapidíssimo. As mãos suadas e entrelaçadas uma na outra, tremiam-lhe, o coração aflito, também lhe tremia no peito, o corpo todo lhe tremia e o rosto ruboresceu por excesso de timidez e humildade:

– O teu Pai do Céu? perguntou o padre

– Não senhor abade, o meu pai Zé Maria Marta!

A resposta foi lógica, não apenas harmónica entre o pensamento e a acção mas também admirável por vir de um cérebro reconhecidamente pouco desenvolvido para a quem já tinha dez anos de idade. O resto da canalha, das pequeninas ovelhas, riu a bandeiras despregadas.

O Chico ligava Deus à hóstia consagrada, ao pão de trigo sem fermento que lhe alimentava o corpo e o espírito. Ele sabia, porque assistia a missas desde a nascença, que o verdadeiro Deus estava materializado naquele pedaço de pão tão doloroso como se todo ele fosse o próprio corpo de Cristo repartido por todos os crentes durante os momentos da consagração:

– Tomai e comei todos, este é o meu corpo!

Era aqui que o Chico bebia a verdade de que precisava para se fazer homem. Pão, dor de o conseguir, esforço tenaz e sofrimento, por tanto igual a Zé Maria Marta.

O homem da batina preta ficou calado por instantes, entendeu o conteúdo da resposta, mas não lhe interessava divulgá-la. No entanto, melhor que ninguém, sabia que o Chico tinha a razão toda. Deus para aquela criança era o pão de cada dia, aquele que lhe alimentava o corpo, dado por quem acarinha, protege, que ama e não castiga. Deus era para o Chico o Zé Maria Marta, uma criatura que  na taberna do Cunha que diariamente frequentava, ingeria vinho maduro até se perder nele. O que chegava à casa ébrio e resmungava com a mulher. O que mijava e entornava o carboneto do gasómetro no quinteiro. O que cavava o chão negro de Germunde a troco de pouco, um mineiro mas também um letrado que buscava as notícias nos poucos jornais e livros que lhe chegavam às mãos. Jornais velhos, lidos e relidos, alguns que já tinham embrulhado sardinhas, livros antigos desgastados pelo uso de pessoas que quiseram compreender o mundo, mas a quem o Marta arrancava as últimas letras como se de perfume se tratasse. O homem que melhor informado discutia na taberna as questões políticas que a muito poucos interessavam. O que falava na consciência colectiva, no poder da classe operária organizada, na democracia. O que tinha cartão da Empresa Carbonífera do Douro que lhe permitia comprar alimento e não só, na cooperativa dos mineiros e barqueiros do Pejão, aquela que lhe ficava com tudo, ou melhor com o resto do tudo que lhe entrava em casa, uma vez por mês, em caixotes de difícil e até impossível gestão. A mesma que praticamente secou grande parte do pequeno comércio em redor da sua sede em Oliveira do Arda e também nas terras limítrofes. Deus para o Chico era o seu próprio pai. Esse patife que depois de regressar do Brasil para onde foi tentar a sorte junto com centenas de outros como ele, consumia os seus dias a cavar o carvão nas profundezas da terra sem nunca ter tratado de si. Essa criatura era o Deus do Chico, uma figura simplória e ridícula quando regressava a casa com o rosto sujo de carvão depois de muitas horas a mourejar no interior da mina, um homem, um imbecil que nunca soube o que é o assentar de um fato de fazenda no corpo mas apenas a ganga azul da camurcina e das calças do fato de mineiro, um ser humano exactamente igual a todos os homens e a todas as mulheres do planeta, com a mesma robustez, as mesmas fragilidade, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações.

O Zé Maria Marta não era Deus não senhor, fui testemunha disso na condição de criança que o via e ouvia a ler partes de notícias no extinto jornal “Comércio do Porto” sem lhe notar significativas diferenças em relação a todos os outros seres humanos a não ser o facto de se procurar cultivar e informar. Era apenas um homem como também o foi Jesus Cristo conforme o repetia nas missas, vezes sem conta, o senhor padre Vasconcelos. Todos o sabiam, mas o só Chico deu essa resposta no exame de aptidão para poder participar na comunhão solene.

– Deus é o meu Pai!

Não sei se o surdo-mudo de Quebra – Fios deu um grito medonho dentro do barco que pilotava no meio do rio e se o céu e toda a terra tremeram naquele instante. Não me lembro, surpreendido como todas as outras crianças, só me recordo dos seus olhos inocentes a olhar-nos num apelo por ajuda tão forte que nos comoveu até às lágrimas.

O abade passou à frente, também emocionado disfarçou o incómodo, deu como válida a resposta ao consenti-la e, passados uns dias o Chico vestido a rigor e de sapatilhas azuis, era um menino feliz a caminhar na fila ao meu lado em direcção à igreja professar e assumir a responsabilidade da fé que nos indicaram, num Domingo quente de Agosto. Nada ou muito pouco se alterou na sua vida desde esse dia.

Foi apurado para todo o serviço militar apesar da sua notória deficiência. Assentou praça em Espinho e logo que concluída a fase de instrução militar, recebeu guia de marcha para Tavira. Nada valeram os empenhos do padre nem o das autoridades locais para tentarem impedir tanta crueldade por parte de uma instituição de cegos.

Por lá ficou dois anos sem regressar a casa. Um benemérito casal daquela cidade algarvia, ia mandando umas cartas a dizer coisas do Francisco que não sabia ler nem escrever. Quando passou à disponibilidade, tiveram de o meter num comboio com destino a Penafiel onde alguém o foi recolher à estação de Novelas.

A deficiência hereditária envelheceu com ele e, dezenas de anos desapoiado pelo Estado do país onde nasceu, apenas lhe restou a certeza de que iria perder o seu Deus para sempre por que mais dia menos dia, cheio de pó negro nos pulmões, o Marta acabaria por morrer sufocado e ele, a mãe e três irmãos mais novos do que ele, dois também deficientes, ficariam entregues a si próprios. Vagueou pela vida inquieto, muitas vezes quis rezar, mas não sabia a quem, por isso, as lágrimas vinham-lhe aos olhos e contorcia as mãos em desespero quando ouvia as badaladas do sino da igreja de S. Paulo.

O Chico era meio anormal como dizia o povo ignorante que pouco sabia acerca dele e do resto. Não tinha as luas todas, era meio inocente como diziam alguns muito mais aluados do que ele, mas o certo é que o Chico ainda hoje sofre e chora pela perda do seu Deus.

Um vento da barra varre as águas do rio Douro em Quebra – Fios. A Pesqueira do Carneiro desapareceu, ficou submersa pela subida das águas da albufeira de Crestuma e já não se vê nenhum barco valboeiro que faça a travessia de pessoas até Gondarém.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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