A TARDE ia resistindo à força do vento, encolhia-se atrás das árvores da beira do rio à espera que a tempestade abrandasse. Dentro da taberna do Melindra, pertinho da água,  em Santigo de  Melres, os nossos vultos sentados numa mesa a um canto,  confundiam-se com duas fragas de xisto da margem do Douro. A conversa estendia-se pela água fora, vinha do Pinhão, parava na Régua e, dali  para baixo, passava em  Bitetos, seguia a embarrar com Rio Mau e  Pedorido,  para horas mais tarde atracar como um barco  no cais da Ribeira, no Porto. Era um somatório de experiências vividas em cima das  águas e silêncios, pausas onde faltavam as palavras todas porque, impedidos de navegar, só nos restava a viagem ao interior de nós próprios.

O Teixeira, que segurava no regaço um pai-natal pequenino, tirou um lenço do bolso das calças com as mãos a tremer (sempre o conheci assim, com este tremor que às vez  até  lhe dificulta levar os alimentos à boca, não é  parkinson  senão já não dizia coisa com coisa, deve ser outra maleita qualquer  que lhe tolhe o porte), passou o pano nos olhos embaciados pelas cataratas mas aquela poeira nunca sai, cega-o, impede-o de ver claramente as perfeições do mundo. Já não é necessário encantar-se,  isso teria de ser feito muito antes dos oitenta quando o organismo reclamava por belezas e consolações de maneira a sossegar os impetos naturais da época, ora agora em que um barqueiro já mal se segura em pé, o melhor seria  limpar as meninas dos olhos e as lentes dos óculos para enxergar outra realidade, mas não, puxou-os para o cimo da testa de modo a tentar ocultar a  instantânea e emotiva representação teatral a que foi obrigado. Os barqueiros sabem-na toda, disfarçam  bem, até nas lágrimas fingem dureza mas, lá por dentro, são homens como todos os outros.

E começou mais uma via sacra, a “pôr os pontos nos is”, como ele costuma dizer:

– Sabes, o Rio Douro foi sempre um rio de difícil navegação por via da forma rochosa das montanhas que atravessa e as constantes  mudanças  de caudal ao longo de todo ano. Por isso a forma dos barcos foi-se ajustando a essas mudanças. Entre a sua foz e a povoação de  Crestuma, eram os barcos de pá, com fundo estreito, de tábuas sobrepostas, bordos altos e proas agressivas, que assentava como uma luva, ao troço onde navegavam. Eram e são chamados por Valboeiros. Já entre a povoação de  Crestuma  e a de  de  Entre-os-Rios, muito a montante, percurso onde existem já diferenças nos terrenos de leito mais pedregoso, o fundo dos barcos é mais largo e usam espadelas ou leme colocado na ré. O Rabão Branco, mais tarde também o Negro, são exemplos dessa mudança nas embarcações. Ali em baixo, em Pé de Moura, povoação ribeirinha que pescava no rio, eram usados os “saveiros”, muito parecidos com os  Valboeiros,  mas já com coqueiro e espadela. Em  Pedorido e Germunde havia uma enorme frota de Rabões, barcaças com capacidade até às oitenta toneladas, às vezes usadas no transporte de carvão desde as minas do  Pejão  até  Campanhã. Foi nesses barcos que passei parte da minha vida. A par destas, e para transporte comercial de diversos produtos, usavam-se as Bateiras, de aspeto semelhante aos barcos Rabelos. Transportavam tudo – frutas, animais, hortaliças, carvões vegetais e lenhas de peso para as padarias do Porto.

De Entre-os-Rios para montante,  eram  barcos de formas ladeiras e boleadas para vencer  as grandes  dificuldades  do  percurso cheio de calhaus e  de pedregulhos enormes muitos deles até se podiam ver à superfície das águas. A partir desta zona os reis do rio eram os barcos Rabelos que, do Alto Douro, vinham carregados de pipas de vinho fino com destino ao cais de Gaia.

Mais uma pausa. A chuva batia  na vidraça do estabelecimento.  Era  inverno e nenhum barco se atrevia a rasgar a turbulência do rio.

Procurei descortinar no rosto enrugado do barqueiro as emoções que por lá passavam enquanto ia contando as histórias do passado. Falava de antigos companheiros extintos, comovia-se, mas segurava firme o leme da embarcação da sua memória:
– Todas as noites ouço essas antigas vozes na minha cabeça. Já morreram todos! Exclamou, condoído!

Com a mão direita a tremelicar, retirou o boné da cabeça. Consagrou aos mortos o respeito que ainda lhe mereciam. Depois continuou:

– Eram tempos lindos, nós éramos todos jovens, tínhamos o sangue na guelra como os peixes  frescos, nada nos conseguia parar. Muitas vezes cantávamos a bordo. Nos dias de calmaria nem remar era preciso, a força da maré levava os barcos. Nisto começou  a cantarolar:

Cem anos que viva não posso esquecer-me
Daquele navio que eu vi naufragar
Na boca da barra tentando perder-me
E aquela janela virada pró mar “

Um sorriso do tamanho do mundo explodiu-lhe no rosto, atravessou o rio de lés a lés e ficou a bailar nas areias da praia da Lomba, onde imaginárias raparigas alegres, dançavam como antigamente sob a luz da lua.

Depois feliz, acrescentou mais um ponto, o ponto final:

– Às vezes era o rio que comandava o barco, levava-o nos braços como se fosse uma mãe a carregar um filho. Outras vezes, principalmente nos dias secos de verão, cheio de sede, pedia-nos colo e, apesar do cansaço, da dor e do sofrimento das nossas  desgraçadas  vidas,  deixávamos  que ele se sentasse nos nossos regaços e juntinhos,  fazíamos  a viagem de regresso desde  Campanhã  até  Germunde.

– Não deve haver um rio como este em parte nenhuma da terra. Ele compreendia-nos, falava com a gente, tinha-nos amor!

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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