PASSAS por mim já muito perto da foz. Banhado em lágrimas, contas-me as últimas histórias que viveste no longínquo Alto Douro onde o vinho escorre lambareiro pelas encostas até quase tocar nos teus líquidos pés.
Falas-me de pessoas, de antigas praças de gentes de cujo esforço heróico, fez nascer um outro mundo onde te espraiaste sonhador e ajudaste a manter com os teus exóticos vapores. De lugares maravilhosos que visitaste ao longo das fantásticas viagens que todos os dias empreendeste no decurso dos milhões de anos que já viveste iluminando com as tuas águas fomes seculares, escuridões territoriais a quem já nenhum de nós dava luz aceitando calados o desprezo e o esquecimento de um país inteiro. De expugnáveis rochedos, fraguedos medonhos rompidos com a tenacidade e a imensurável força das tuas alucinadas águas. De montes, outeiros facetados pelas mãos do homem que, para te enfeitar, os coroou de vinhedos transformando-as em jardins espectaculares. De localidades fantásticas que ajudaste a nascer atraindo pessoas de todas as partes do mundo que até este país vieram e se lançaram nas tuas correntes maravilhados pelo assombro das paisagens, do amistoso sorriso das gentes e da saborosa gastronomia. De reentrâncias trabalhadas com infinito amor e finíssimas rendas bordas e edificadas pelas tuas mãos nas margens que te ladeiam onde repousam velhos barcos carregados de sonhos lindíssimos.
Vais feliz e simultaneamente triste a caminho do mar. Tal como eu, tens de cumprir o teu destino até à última gota do dilúvio de água que te anima. Em breve serás parte integrante de um imenso oceano, um colosso, o paraíso de todas as águas. Há tantas semelhanças nas nossas comuns existências sobre a terra. Tu já foste mar, depois tornaste a ser rio, daqui a pouco serás mais uma vez oceano. Eu já fui pó, gerei-me a partir do nada de onde tudo se cria ou transforma, brevemente voltarei a ser cinza, pó e nada. Do que sou e fui, salvar-se-á um espírito que regressará à casa paterna, ao todo de que faz parte depois de ter sido um homem igual a todos os outros, um ser animado e vivo e de, embora quase em vão ter tentado tudo para ser feliz sabendo muito bem que esse estado de perfeita sintonia entre o corpo e o espírito, apenas se atinge em esporádicos momentos da nossa existência. Transcendemos o tempo, este nosso tempo, somos eternos ao metamorfoseando-nos continuamente até à improvável consumação dos séculos. No fim dos dias, se por desdita de todos nós houver um fim para a perfeição das coisas sagradas deste mundo, terminará a luz que é a essência da vida e ilumina a terra, ou se para bem de nós todos, os séculos se perpetuarem e tu serás para sempre um oceano infinito, um esplendor maravilhoso aberto aos ávidos e felizes olhos das criancinhas que nunca temeram a imensidão dos mares nem a força medonha dos rios, e eu um espírito purificado, um dilúvio de luz a caminhar feliz sobre as tuas ondas.
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook, Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.