A MINHA antiga casa, o centro do mundo onde nasci, mas que por circunstância que não dominava em criança, abandonei há muito. Estas paredes em modo de natural demolição, ainda têm de mim uma magoada e duradoira lembrança, uma espécie de comoção e sobressalto quando inesperadamente me surge à flor do pensamento.
São memórias de barcos a navegar na água, de pessoas que já não habitam este mundo, do latido de animais que fizeram parte de nós e eram dádivas com que a natureza nos premeia, dos estrondos de passos a subir e descer as velhas escadas de madeira, de conversas animadas, mas já substituídas pelo silêncio tumular da região. De gargalhadas, sorrisos de alegria, plena felicidade que ecoava com sonoridade musical em todas as repartições do prédio e de lágrimas infantis causadas pelo frio, pela fome ou perda de rudimentares brinquedos. E outras de dor real, abafadas nas funduras da alma para sempre.
Muitas vezes, naquele ambiente onde o amor e a ternura coabitavam lado a lado connosco e eram o elemento mais forte da união familiar, imaginava-me num lugar de delícias, num paraíso onde o aconchego maternal era como se fosse as mãos de um deus protector, caridoso e indulgente a flutuar constantemente sobre as nossas vidas. Mãos abençoadas por entidades superiores numa mulher, numa mãe, que nos acariciavam os cabelos e os rostos, recetáculos para ela sagrados onde, com o coração a trasbordar de ternura e de amor, depositava a doçura dos seus incomparáveis e inesquecíveis beijos maternais.
Depois a vida levou-nos para locais diferentes e distantes daquele ninho onde viemos ao mundo. Mais tarde, assistimos impotentes a ver a mesma vida a maquinar de forma que nos parecia impossível. Os irremediáveis desenlaces, o afastamento que nos configurava a sítios diferentes, a outros modelos de vida. E nos fez criaturas carentes e solitárias no centro da multidão que não gera afeições duradouras.
Realço a substância líquida omnipresente em todos os momentos da nossa existência. Falo de um rio que corre tranquilo no seu leito, a bordejar as pedras dos muros de xisto que precariamente seguram os socalcos das hortas, e também pelas veias de quem aqui nasceu e o vai mantendo vivo através de gerações que nunca o esqueceram e o transportaram e continuam a transportar para todos os cantos do mundo. Como se pudessem prendê-lo na pequenez das suas mãos vazias, porque ninguém é dono de nada a não ser do seu próprio pensamento.
Movido por esta angústia que me persegue desde a meninice, quebro as amarras que me prendem à cidade e volto à casa velha onde nasci. De vez em quando insisto, cedendo às saudades. Sou um pária, um vagabundo da história, mas reconheço-me na escultura agreste e doce da paisagem. Identifico-me plenamente com este pedaço de chão onde vim ao mundo.
Eu sei que já não tenho ninguém à minha espera neste presépio quase desfeito, mas dentro de mim, na profundidade do meu coração vadio, há uma voz muito antiga a reclamar constantemente pela minha presença. E venho, porque é impossível resistir ao chamamento do sangue que me corre pelo corpo. E abraço-a em lágrimas com tanto carinho e tanta ternura, como se ela fosse a minha própria mãe.
Quem sou eu depois de ter perdido muitos daqueles a quem amei? Sou terra onde se agarram torgas, giestas, urzes e rosmaninhos. Sou água, sou rio, árvore, leiras, pedras e socalcos. Sou eternamente Douro.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.
Gostei muito do texto, está excelente. Mas gostei mais da foto.