DANTES os cães e os gatos entravam nos tascos e nos cafés da minha aldeia. As portas estavam escancaradas, entravam todos, pessoas, gatos e cães, menos as mulheres. Os tascos eram divididos em duas partes. Numa, as pipas, as canecas, o mosqueiro que guardava as pataniscas, as sardinhas e os peixinhos do rio fritos. Na outra, mercearias diversas, quinquilharias, carboneto para os gasómetros em latões, fardos de bacalhau, sacos de arroz, farinha e tecidos. Era este último o compartimento onde as mulheres estavam autorizadas a entrar. A divisão não tinha porta, os homens viam as mulheres, as mulheres podiam ver os homens e, de vez em quando, a caneca do vinho tinto saltava de uma divisão para a outra num ritual sem falas, consentido por todos, demonstrador de afectos.

Os animais enroscavam-se debaixo das mesas a dormitar, à espera de restos. Dantes havia poucos restos, não sobejava nada do molete que trazia duas sardinhas entrincheiradas lá dentro, comia-se tudo, até as cabeças esturricadas no tacho de fritar eram saboreadas até ao último estalido nos dentes.

Dantes os animais falavam com as pessoas, era raro o dia em que não houvesse debates e discussões acesas sobre isto e sobre aquilo, que acabavam sempre regadas com vinho nos tascos e num ambiente de alegria.

Uma vez um porco entrou na taberna do Ti Narciso, no centro do lugar, e disse que estava farto de ser porco e que gostava de ser presidente de uma coisa qualquer. Ninguém lhe respondeu, isso de ser presidente de uma coisa qualquer era assunto que não interessava muito aos humanos. Os presidentes das câmaras e os das juntas, nessa época, já nasciam com queda para desempenhar o cargo, não eram eleitos pelas pessoas nem pelos cães, nem pelos porcos ou mesmo pelos gatos. Eram nomeados conforme a procedência familiar, pela agressividade com que tratavam os seus semelhantes ou pelos bons serviços prestados ao regime.

Dantes todos dormitavam na taberna; os cães enroscados debaixo das mesas, os gatos empoleirados na prateleira dos copos e das canecas, e as pessoas debruçadas sobre o tampo de um barril ou sentadas num mocho, de cabeça a cair sobre o peito, ressonavam baixinho.

Ao fim das tardes, tocava-se viola braguesa e começavam os animados cantares ao desafio. Eram quadras inventadas no momento que deflectiam partes das angustiadas vidas de todo um povo. Os cantadores, barqueiros, mineiros e pescadores, desafiavam-se ao longo dos versos e, numa atmosfera carregada de vapores de álcool, só o som arrastado e melodioso do instrumento e as vozes dos cantadores quebravam o silêncio do sagrado templo.

Era um mundo aparentemente feliz onde se ficava a conversar, a cantar, a beber, a escarafunchar os dentes e a falar com os animais a tarde toda e só se saía de lá para mijar ou quando as portas se fechavam, à noitinha. Dantes podia-se verter águas em qualquer lado: no muro da casa da Sobreira, na esquina da loja do Viana e até atrás da sacristia da capela.

Dantes não havia contentores de plástico com lixo dentro. Queimava-se tudo na horta e até se podia arriar o calhau no meio de um campo de milho ou nas bordas por baixo das ramadas. Dantes os camiões da câmara não vinham buscar as imundices à minha aldeia e às aldeias dos três concelhos vizinhos, para levar tudo para a minha aldeia. Dantes prometia-se, jurava-se a pés juntos e pela honra dos porcos, dos cães e dos gatos que o aterro sanitário teria a duração de dez anos. Que depois desse tempo, aquilo era transformado num jardim com relva, árvores, mesas e cadeiras. Um parque lúdico onde se poderia merendar e dormir uma soneca, estalicados na relva.

Dantes os políticos não eram gente séria. Prometiam e não cumpriam. O aterro está lá em cima, no monte de onde se vê o rio Douro a acenar-lhe com um lenço negro, há mais de vinte anos.

Dantes havia peixeiras de canastra à cabeça carregada de sardinhas ou peixinhos do rio, e os gatos e os cães corriam pelos caminhos atrás delas. De vez em quando aparecia um peixe moído e era deitado aos gatos e aos cães, que repartiam entre si o produto da paciente e longa espera.

Agora há cães e gatos como dantes, mas os peixinhos do rio acabaram, porque fizeram uma barragem no rio, que acabou com as praias e com a pesca. Tudo para bem das populações! E as sardinhas, que já não se pode garantir serem do nosso mar, viajam na carrinha dos peixeiros e peixeiras, misturadas com peixes criados a farelos, e os gatos e os cães não correm atrás da carripana pela aldeia toda. Esperam no sítio onde param para aviar os fregueses e não se pode mijar nas paredes.

O Zé peixeiro é amigo dos gatos e dos cães, tem bom coração e dá-lhes peixes todos os dias. Já os donos dos talhos não repartem as aparas pelos animais, vendem tudo.

Uma vez as pessoas da minha terra criaram uma banda filarmónica e uma casa para a cultura das pessoas da minha terra. Outra vez as pessoas da minha aldeia construíram um ramal de água ao domicílio e iluminaram a terra toda com luz pública. Uma vez as pessoas da minha terra criaram um campo para jogar à bola. Uma vez as pessoas da minha aldeia fizeram uma capela nova restaurada a partir de uma outra centenária.

O povo da minha aldeia já foi culto, fazia inveja às aldeias vizinhas. Agora é só instruído e já não sabe remar, nem pescar, nem fazer coisas novas.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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1 COMENTÁRIO

  1. « Era este último o compartimento onde as mulheres estavam autorizadas a entrar. A divisão não tinha porta, os homens viam as mulheres, as mulheres podiam ver os homens e, de vez em quando, a caneca do vinho tinto saltava de uma divisão para a outra num ritual sem falas, consentido por todos, demonstrador de afectos.»
    Passou-se há dezenas, talvez centenas de anos. Entretanto, toda a rotina destas vidas mudou. Quantas vezes, por sua própria iniciativa! GRANDE POVO este que, por mercê do seu sonho de crescimento, lança mãos à obra e fecunda-se sozinho!

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