ANDA cá, vem sentar-te no meu colo, apetece-me falar contigo hoje, de homem para homem, sem ter de partilhar com o mundo que não me quer ouvir, as razões por que as palavras podem ser um fado.
És ainda uma criança que não entende a grandeza do projeto que te colocaram nas mãos. Viver é muito mais que respirar, é muito mais que adquirir força nos músculos e empreender grandes caminhadas.
Há só duas formas de viver uma vida; uma é deixar que seja ela a escolher o caminho, a outra é sermos nós a definir o rumo e a marcar o ritmo das passadas, no percorrer da rota que pretendemos seguir.
É como um barco que segue sempre para onde o comandante o manobrar.
A tua irmã e as tuas primas brincam com bonecas, são mulheres, nascidas mulheres, sempre desempenharão o maternal papel de dar amor, consolar, ponderar, discernir, eleger, conciliar, planear e procurar o ninho onde cresçam sob mil cuidados os seus descendentes.
O Sol, aconteça o que acontecer, erguer-se-á todas as manhãs por detrás daquelas montanhas com a eterna missão de aquecer a Terra e trazer de volta os sonhos e as ilusões que no dia anterior levou com ele. Se respeitares a Natureza inteira da mesma forma com que ela vai ser generosa contigo e te vai amar, virás a ser um homem realizado, alcançando aquilo que é afinal o desejo comum a todos os mortais; viver em paz e ser feliz.
Respeita-a, portanto, acima de tudo e de todos, porque sem ela jamais conseguirias pisar o chão deste planeta. E se conseguisses, nunca sobreviverias num caos então tornado absoluto. Usa da mesma consideração para com os teus semelhantes e nunca permitas que conscientemente, dos olhos de alguém brote uma só lágrima de sofrimento causada pela tua indiferença e insensibilidade perante as diferenças ou fraquezas dos outros.
Ainda não te contei o que foi a minha vida, mas temo que tenha sido uma fotocópia tirada na mesma máquina que regista as vidas de biliões de pessoas espalhadas pela Terra. Por humildade, nem sequer te falarei nisso. Teve tudo e de tudo como as de todos os outros, igual ao decerto vai ter a tua. Com uma pequena particularidade comparada com as de muitos para quem viver foi um pesadelo. É que, apesar de ter sido ela a escolher o meu caminho, momentos houve em que fui eu mesmo a comandar o barco e a traçar livremente os sonhados e desejados azimutes.
Nunca hei-de saber se o fiz bem ou se foi um erro, mas aprendi e fiquei a saber que, por necessidades, algumas vezes todos nós teremos de agarrar com força o leme da nossa embarcação e marcar o rumo que a pode levar ao porto da salvação ou a desfazer-se contra as pedras.
Olha duas rolas a cantar pousadas naquele pinheiro. Vieram de muito longe, atravessaram mares e continentes estranhos, em busca de um lugar de paz onde criar os filhos. Tal como os seres humanos, invadiu-as um sentimento de melhor vida, um apelo do sangue herdado dos seus antepassados que num dia longínquo também para aqui vieram à procura do sol para e perpetuarem as suas espécies. Há um ninho naquele arcipreste. Nesse mesmo abrigo que vai resistindo às inclemências do tempo como ligeiras reparações feitas por eles, duas pequenas crias que os pais sem vacilar alimentam, e desdobrando-se em permanente vigilância cuidam, protegem e fazem crescer. Há vidas dependentes nesse ninho, tal qual como tu dependes agora dos teus progenitores. Talvez nenhuma delas sobreviva à maldade do mundo e, depois de tantos desvelos e aprendizagens, deixem de voar porque há pessoas sempre prontas a destruir as belezas do mundo. Os homens gastam biliões para se instruírem e tostões para se cultivarem e, sem cultura é impossível a formação de pensamento.
Repete-se à frente dos teus olhos pequeninos as cenas milenares que conduzem à preservação e continuação das espécies, caminho que a natureza percorre incansavelmente contra tudo e contra todos, quase sem ajuda de ninguém.
O sol vai a desaparecer por cima de Melres. É um enganoso por-de-sol, porque nesta fase o astro rei nada põe e tudo tira, leva dentro daquele clarão vermelho muitas fantasias, os sonhos de alguns e outras abundantes ilusões, que não chegaram a concretizar-se no efémero espaço de um só dia com luz. Voltará amanhã para repor a esperança. Iremos os dois vê-lo nascer, do alto da Serra da Boneca. Será um momento esplendoroso e inesquecível, maravilhosa e perfeita sinfonia que nenhum famoso compositor seria capaz de executar numa grandiosa partitura. Primeiro um clarão enorme elevar-se-á no céu a Este, uma bola de fogo crescerá lentamente como se das entranhas da terra se soltassem em erupções fantásticas, todos os magmas ainda incandescentes. Iluminará as cristas das montanhas e fará ressuscitar a vida em todos os recantos onde chegar. Sem vacilar um instante que seja, descerá às profundezas dos vales onde correm rios como corre o Douro que é nosso e que, num cintilar de luz e de prata, despertarão também. Trará com ele novas e diferentes fantasias, outros sonhos e muito mais ilusões que poderão ou não sobreviver como aconteceu a todos os que ele arrasta hoje consigo. É um ciclo, uma roda viva que nunca pára, repetindo-se eternamente.
Adormeceste no meu regaço, deves ter regressado agora ao lugar de onde vieste. Este mundo aflige, desilude e ilude, não é tão igual ao ventre de uma mãe onde toda a proteção é natural e todos os sonhos são permitidos.
Decerto nem conseguiste ouvir sequer um terço das minhas palavras. Também não interessa para nada repeti-las. Porque uma vida, Afonso, não cabe em nenhum livro, em nenhum filme e ninguém te poderá descrever por palavras o que ela é, como irá ser a tua. Porque apenas se conhece como foi uma pequena parte da vida de alguns.
A vida, meu amor pequenino, é um fado falado!
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.