Na Corga, o alvor da manhã surpreendeu a Chica, mulher do Marto, a cavar as leiras para semear batatas.

Quarenta anos de vida dura, transformaram uma figura de mulher bonita, numa silhueta cinzenta e desleixada. O rosto outrora mimoso, tinha agora a mesma idade do mundo. Rugoso e cansado, segurava dois olhos azuis e mortiços ao fundo de duas  cavernas. Os maxilares salientes onde dentes raros cravados davam forma e antecipavam um esqueleto mortal, definiam a escanzelada magreza do corpo.

As hortas. Pequenos retalhos de terra nas margens do rio, tomadas a terço ao senhor Raposo, constituíam o suplementar orçamento do casal e dos filhos. Eram bocaditos dispersos aqui e ali, cultivados pelos mais pobres, a troco de uma das três  partes da produção que podia ou não ser generosa. O tempo o determinaria. Correndo lento e soalheiro ou frio e chuvoso, procederia sozinho à criação dos mimos. As contas, essas acertavam-se pelo S. Miguel, por alturas da feira das colheitas em Arouca.

Na alma dessa pobre mulher, o dilema provocava a angústia e dava lugar a um misto de raiva, desespero e  resignação, sentimentos que não conseguia controlar. A causa de semelhante sofrimento, era a Rosalina, a filha mais velha, criança ainda. Com dezasseis anos, tinha largado a escola aos dez e fora lançada num mundo agreste e desconhecido onde toda a meninice feliz e despreocupada deu lugar ao esforço fabril, como se já fosse um ser adulto. Trabalhava numa serração em Gondomar, a carregar madeiras na fragilidade de uns ombros frágeis ainda para semelhantes tarefas. Por lá conheceu um rapaz corticeiro de quem nem o nome sabia, mas que, na fúria de uma paixão efémera, lhe encheu a barriga num repente.

Um dia, apareceu chorosa em casa dos pais, trazendo nos olhos cor-de-céu, a ruína de uma juventude lancetada, o desgosto impune que a iria transformar num ser anormal e desprezado:

– Prenhe, vá lá que não vá, ora não saber nada acerca do pai da criança, isso é que era o cabo dos trabalhos!

Como é que iria apresentar a notícia ao marido?! Ele era capaz de entender a prenhez, a vinda do neto, mas sem pai? Não podia ser!

A Chica dava voltas e reviravoltas à cabeça, mas nada lhe surgiu de lucidez ou de consolo. Ela também emprenhara do Marto antes do tempo de casada, mas em circunstâncias muito diferentes destas, em que a filha desconhecia por completo quem era o pai da criança. Resignada, cava a terra dia e a erva orvalhada molha-lhe os pés gretados e nus.

De tempos a tempos, voltava a realidade a consumir-lhe a cabeça:

– Mais uma boca! Já eram sete! E agora?

Olhava o cesto das batatas rachadas em quatro, onde uma criança com quatro meses de vida, dormia regalada, embrulhada nos restos de uma manta.

– Que tola! Mal saiu de casa, meteu-se logo debaixo do primeiro que lhe apareceu!

Ela também tinha ficado cheia em solteira, mas era diferente, foi com o mineiro que, além de vizinho, era amigo da família e tinha cartão da empresa e tudo o mais!

– Precisava que lhe chegassem a roupa ao pelo! Mas prenha não, poderia perigar!

– Mas dumas lostras bem dadas, aí que precisava, só se perderiam as que caíssem no chão!

– A maluca! Onde é que se viu isto! Vai ter de fazer um desmancho, nascer é que não pode!

E comida? Quem é que a vai sustentar? O Marto!? Ela vai boa, o desgraçado mal ganha para o caldo, que fará para alimentar mais uma boca! Tem de ir a Avintes fazer um aborto! Tem de tirar aquilo da barriga!

Clarificaram-se as ideias da Chica, pensou e encontrou a solução, afinal o problema nem era assim tão grande, cabeça fria e tempo e lá se encontravam improvisadas soluções.

A Rosalina não foi a Avintes, mas se tivesse ido não saberia de antemão se voltaria a casa depois de sujeita aos artifícios de mãos inábeis que lhe rasgariam o ventre sem qualquer piedade. Podia esvair-se em sangue e morrer ou então, humilhada e calada, deixar a alegria num recanto obscuro das tramoias inconscientes de uma sociedade injusta e hipócrita.

– Vai ser já amanhã! O marido nem vai saber de nada, e se souber, se lhe chegar aos ouvidos!? Também não interessa, é um perfeito anjinho, cala-se e pronto!

A mão do destino ou o poder do infortúnio a suster a vida e a morte por um ténue fio. Nascia-se e vivia-se na Corga conforme a honra e o pão! Nada mais se jogava no desgraçado tabuleiro de muitas vidas. Por ausência de acompanhamento especializado, julgava-se, condenava-se e executava-se a sentença, na leira a plantar batatas sem aconselhamento médico ou jurídico e sem ouvir as partes. Continuará a ser um pouco assim por este país fora, onde os clarões do progresso já permitem alguma atenção aos problemas dos mais desfavorecidos e começam a iluminar muitas almas.

A Chica não podia saber nem sequer conhecer os imponderáveis golpes da sorte ou as circunstâncias a que todos estamos sujeitos. Também esses predicados iriam mexer as pedras do malfadado xadrez das nossas vidas e nada aconteceria como ela determinou. O dia era ainda uma criança, até anoitecer muitas coisas mudariam radicalmente. Ninguém é dono de nada, senhor sequer do seu próprio destino, muito menos do dos outros. Essa mulher era apenas a vítima de um mal que alastrou como um vírus pelo país, desde sempre acelerado pelas péssimas condições de vida da maioria do povo. As grandes decisões da vida, aquelas que a solidariedade e a justiça social deviam acompanhar de perto, perdiam frequentemente a  importância devida e normal efeito. A Chica foi também culpada, mas a verdadeira culpa, neste e em muitos outros casos, possivelmente morreria solteira.

Cavava a terra em lágrimas, desconhecendo que lá longe, em Germunde, nas profundezas do chão de carvão, acontecia a tragédia que acabava de lhe matar o marido:

A notícia demorou a chegar, mas veio trazida nos olhos dos companheiros de profissão e de viagem.

Absorta na tarefa, fez uma pequena pausa. Desatou o nó do lenço de merino amarelo e preto que prendia na cabeça, e olhou mais uma vez o horizonte com um olhar perdido e desconsolado. Nem o rio Douro a correr sereno ali perto, deu conforto e paz a esta infeliz criatura. A criança chorava no cesto das batatas, e sem largar a enxada das mãos, a mãe entoava com dolência uma canção de embalar:

– Dorme, dorme, meu menino, que a tua mãe logo vem! Foi lavar os teus paninhos, ao reguinho de Belém!

Que imprecisão de forma e de tempo! Que desconexa realidade, que estranha forma de mostrar o amor materno que trazia  dentro do coração ou então, por efeito de estranha magia, que só o poderoso amor maternal conhece, os paninhos que a mulher dizia que lavava nas mesmas águas que lavaram as fraldas do menino Deus, eram aquele pedaço de aço enfiado num bocado de madeira, que regado pelo suor do corpo, subia e descia num ritmo vertiginoso e dolorido, rasgando as entranhas da terra que havia de dar o sustento. Cantava uma canção de embalar, tentando dar-lhe um som de ternura, carinho e súbita alegria, mas o coração ia negro, tão negro como as noites da inocente filha Rosalina.

A criança reconheceu a voz da progenitora e a doce melodia, sossegou e calou-se. A Chica, de lágrimas nos olhos, retomou as preocupações da vida, que lhe iriam enrugar ainda mais o rosto. Outrora mimoso e feliz.

O rio Douro, a correr sereno em baixo, comoveu-se e jurou vingança.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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