QUANDO há alguns milhares de anos nascemos neste recanto do mundo, julgávamos que iríamos ser muito felizes por toda a eternidade.
Nos primeiros tempos da nossa já longa existência, eu olhava para ti, via-te crescer lentamente e tu, do outro lado do rio Douro, olhavas para mim e, presumivelmente deverias sentir o que eu sentia. Passamos muitos anos, muitos dias e muitas noites a contemplarmo-nos um ao outro remetidos ao silêncio das coisas eternas.
Nos dias em que a neblina te cobria totalmente, eu ficava apenas a pressentir-te desse lado e a viver a angústia de quem perdeu um grande amigo. A manhã despontava e o lençol de algodão que te cobria, subia a serra e tu reaparecias a brilhar sob os matinais raios do sol. Juntos vimos acontecer tanta coisa, pessoas nascerem e morrerem, crianças que se transformaram em adultos, avistamos a chegada de outros que te desventraram as entranhas e retiraram de lá o minério cujo produto da venda nunca foi usado em teu benefício. Deixaram os teus e os meus filhos doentes, usaram a força da sua juventude em trabalhos forçados e a até desumanos para extraírem da terra o carvão que alimentava a indústria, os transportes e as caldeiras do aquecimento citadino enquanto o nosso povo sofria as agruras do frio nos prolongados Invernos.
Tinhas nas tuas entranhas as minas do Pejão, indústria extractiva que, ao mesmo tempo que dava ocupação laboral ao teu e ao meu povo, matava toda a esperança de poderes enfrentar o mundo novo que se avizinhava. Ficaste como eu agarrado ao passado, a ver secarem todas as ideias de moderno progresso, impedidas pela empresa de que todos dependiam, a qual comandava tudo e todos não permitindo a instalação de outras indústrias no raio longo que dominava. A mão-de-obra da região era dela, tudo o que atentasse contra esse privilégio, era imediatamente abafado a recorrer a cooperações bem pagas vindas do poder instalado na capital do país.
Tanto passado, tanta história submersa nos rios que são nossos ou soterrada nas profundezas da terra agora vazia de riqueza. Tantas mortes, tanta vergonha por terem consentido a fúria dos estrangeiros sedentos de abundâncias para si próprios, tanto orgulho nos povos resistentes e fazedores de esperança que viveram e vivem em nós. Tantos factos negativos que essas dinâmicas criaram tornaram-nos simples espectadores sentados na plateia do imenso teatro do mundo a testemunhar a inevitabilidade dos acontecimentos porque nada poderíamos fazer para alterar a orientação à dramática história que se desenrolava em frente aos nossos olhos. lembras-te de quando éramos pequeninos e a mãe natureza nos colocou aos pés duas correntes de água cristalina e pura? A ti tocou-te o rio Arda, a mim a sorte ditou que fosse o rio Mau, mas, para que nos sentíssemos protegidos, fez correr entre nós o rio Douro imenso de caudal e a partir daí, tudo começou a ganhar forma. Não falámos um com o outro durante esse período interminável de tempo e no entanto sabíamos tudo o que se passava em cada uma das bandas do rio. Se o sino de Santa Eulália espalhava badaladas no vento, ficava-se a saber se iria haver missa, se morreu gente, se era homem ou mulher ou um anjinho cujo florir para a vida foi lancetado por efeito de doença ou insuficiente nutrição. Quando o sino da minha capela de São João Baptista se fazia ouvir desse lado, também tu tomavas conhecimento das notícias mais urgentes e mais importantes. Se um foguete estoirava sob o teu céu, ou escutavas os sons de música difundida em potentes e amplificados altifalantes, sabia que estavas em festa, que o teu povo rejubilava de alegria e felicidade. Contigo acontecia o mesmo quando semelhantes sinais ecoavam sobre o vale onde correm três rios.
Estamos frente a frente há milhares de anos e no entanto nunca nos consentiram um abraço que quebrasse este divórcio forçado onde o amor continua a ser a componente mais forte da separação. Bastava uma ponte que ligasse as duas margens do rio Douro para podermos enlaçar as mãos e seguir juntos até ao fim dos tempos.
Os homens não permitem afectos, decidem sempre em seu próprio proveito sem atender às justas reivindicações dos povos e da salutar harmonia criada e abençoada pela natureza. Como se não fosse suficiente a barreira do grande rio, separaram-nos quando decidiram dividir o país em distritos. Tu ficaste a pertencer a Aveiro e não percebias patavina de ovos-moles, nem tão pouco te dedicavas à recolha de moliços com barcos de borda baixa e de proa e ré elevadas, coisas muito diferentes dos teus lindos barcos valboeiros conservadores das artes de navegar em rio, característica deixada pelos povos fenícios que aqui viveram noutros tempos. Eu fui integrado no distrito do Porto, não protesto, mas custa-me que tu fosses para tão longe do rio, dos barcos e do vinho generoso. Tu és mais Douro, mais Rabelo, mais Valboeiro enfim, és como eu uma entidade própria que não depende de ninguém nem recebe lições de nenhuma história escrita para justificar o injustificável e branquear a maldade de alguns dos já mortos. Aliás todas as histórias são o produto de encomendas da época, recheadas de inverdades, fantasiadas de modo a provocar confusões, lavagem de consciências, reabilitação de figuras desastrosas misturadas com meia dúzia de casos por ventura autênticos.
Para exemplo, cito-te uma pequena parte da história de Portugal que relata a tomada de Lisboa aos mouros pelo nosso vizinho Afonso Henriques de Guimarães. Isso foi quase verdade, aproxima-se do real embora atulhada da ficção que convinha na altura e veio a revelar-se importante para a nossa afirmação como pátria, mas sucede, para desonra nossa, que em mais nenhuma história relatada do mundo aconteceu o inédito e impensável caso que viria a seguir, os conquistados passaram a mandar nos conquistadores, coisa que ainda hoje acontece, e este pequeno recanto onde nasceu a nacionalidade, só tarde demais ficou a saber que tinha lutado e vencido para ser transformado em dependente dos novos tiranos ocupadores do recinto.
São, pois, os sucessores dos antigos mouros que nunca foram grandes guerreiros, mas mais vendedores de tecidos e camelos do que outra coisa, a decidir os destinos de todos nós. Fazem-no com a habilidade característica dos negociantes sem escrúpulos, ficam com a carne e deixam-nos as tripas, integram quem se deixa comprar, perpetuando assim o seu déspota e intolerável reinado, que basicamente consiste em manter a abundância de alguns em prejuízo de todos os outros. Ai daquele ou daqueles que levantarem a voz contra tal opressão democrática, um coro de vozes obtusas atestadas por medalhões presenteados em cerimónias faustosas no dia de Camões e das Comunidades, aparece imediatamente a realçar o provincianismo de tal ou tais atitudes contra aquilo que consideram ser a união nacional, desmentida permanentemente pelas estatísticas que provam as assimetrias e por tal objectividade dos números, confirma-se que sempre tivemos razão em protestar. As instâncias superiores do poder estão lá ao dispor e prontas a vir em massa e em força em defesa dos seus direitos que julgam adquiridos. Mete nojo, provoca desânimos em muitos, solturas que nenhum remédio cura, mas contra aquilo que é considerado lei e ordem, ninguém pode avançar. É por isso irmãos que nunca nos construíram aqui uma ponte.
Lembro-me de um secretário de estado de um governo já democraticamente eleito que um dia sentado deste lado do rio a olhar para ti, soltou do interior da sua falta de sentido de estado e de cultura, a seguinte observação:
– Para que querem aqueles gajos uma ponte aqui, se ficam na mesma longe de tudo?
Um ignorante é um homem perigoso à sociedade em qualquer parte do mundo, mas nota-se mais a sua insipiência quando de ânimo leve analisa e decide sobre o que desconhece. Um povo inculto é como um rebanho de ovelhas, obedece ao pastor e vai sempre na direcção que ele soberanamente lhes indicar, até para a morte.
Lembro-me do dia do teu baptizado e daquela princesa moira que rasgou um dos pés nas pedras dos teus caminhos. Sentada nas Côncas, a estrangeira exclamou a frase de que parte, viria a tornar-se o teu nome de menino:
– Tenho o pé dorido! E tinha, não só pelas irregularidades dos carreiros, mas também pela interminável e inútil viajem a que se tinha proposto. É uma lenda e, como todas as lendas, obedece a um carácter fantástico ou fictício que combina factos reais e históricos com outros irreais que são meramente produto da imaginação dos povos. Seja como for, algum motivo ou motivos existiriam na altura para que as pessoas te rebaptizassem, rejeitando todos os nomes que a história pensa serem os da tua origem. Petraído não era de facto a designação mais correcta para definir um lugar maravilhoso banhado por dois rios. o mais certo será teres sido Pedorido, assim soa melhor e situa-te claramente no lugar que hoje ocupas ao pé do rio. Pedorido. Parece que a tua sina acabava de ser amaldiçoada por uma princesa vinda dos confins do mundo. Dorido foi o teu passado, talvez mais doloroso do que alguém pudesse imaginar para chegares como eu aos tempos da modernidade onde já nos apetece viver. A mim, baptizaram-me de Rio Mau e tu sabes porquê. Este pequeno curso de água que quase me cerca, transformava-se num louco quando absorvia os dilúvios que vinham dos montes. Rio Mau, rio muito mau.
Tudo se alterou desde então, o que era desolação e miséria foi transformado em beleza que extasia, ignorada cá dentro, mas apreciada por gente estrangeira e representada em bagadas de água pura que são maravilhas e repouso para os olhares de quem já avançou para além da mediocridade e da indiferença. O que de mais maravilhoso a terra tem, a essência da vida, sobeja-nos. Somos bonitos irmão. Não há neste mundo nada que se compare à nossa esbelta fisionomia de traços delicados onde a mãe natureza vem brinca todos dias. Temos tanto orgulho em nós, tanta admiração pelo assombro que causamos a quem nos visita que muitas vezes coramos no rosto da nossa humildade. Tanta gente vive agora em nós, somos duas povoações viradas para o futuro assente num desenvolvimento sustentado que une e permite o nascer de uma nova cultura voltada para o que o mundo tem de diferente e de esperança sempre com o passado preso numa das mãos. Hoje apetecia-me abraçar-te meu irmão. Sei que não me é possível estender os braços sobre o rio douro e enlaçar-te com todo o enternecimento deste momento solene, mas perante essa impossibilidade, vou mandar-te o rio Mau ao encontro do teu Arda e então as duas águas, misturadas num abraço, assemelhar-se-ão a um beijo.
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook, Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.
Li e reli. O texto merece ser lido e relido. Admirei a imagem de António Silva, que tão bem testemunha as palavras de Manuel Araújo da Cunha.
Comovi-me, perante o sentir dorido do escritor e poeta. A realidade nua e crua, na voz do ser humano tão autenticamente amante das suas origens.
«Estamos frente a frente há milhares de anos e no entanto nunca nos consentiram um abraço que quebrasse este divórcio forçado onde o amor continua a ser a componente mais forte da separação. Bastava uma ponte que ligasse as duas margens do rio Douro para podermos enlaçar as mãos e seguir juntos até ao fim dos tempos.»
Quem terá coragem de o desmentir? Ninguém, dos senhores que decidem sobre os destinos do mundo, irá ler este desabafo!
Eu, leitora fiel do autor, li e reli. E comovi-me, perante a impotência dos que sofrem, fazendo leituras que muitos não são capazes de enxergar. Abraço cúmplice, neste sentir das coisas.