TUDO SE ALTEROU EM POUCOS ANOS. Os homens da ciência e da técnica transformaram de tal maneira o mundo que seria difícil estabelecer comparações entre o antes e o depois sem causar sérias dúvidas nas criaturas mais jovens. Surpreendem-nos todos os dias com novas invenções e ultra modernos processos de atenuar atrasos milenares. Tudo começou, não faz assim tanto tempo, há menos de cem anos antes da Revolução Industrial, a actividade produtiva era artesanal, quase tudo era feito manualmente e usavam-se algumas máquinas muito simples. Toda a locomoção da agricultura era feita por animais, bois, cavalos e burros, eram utilizados em quase todas as tarefas do campo e das florestas. Quase todos os trabalhos de manufactura, eram realizados em oficinas existentes nas próprias casas dos artesãos e esses profissionais da época dominavam muitas das etapas do processo produtivo. Os transportes eram também movidos pela força animal até nas grandes cidades.
A história que te vou contar passou-se há cerca de trinta anos. Como poderás imaginar o processo de expansão dos novos conhecimentos, foi moroso, arrastou-se pelo tempo fora até aos dias de hoje com evidentes prejuízos para as populações.
Parecia impossível mas mal amainavam os calores de Agosto, acabavam as romarias e deixava de se ouvir o estalar dos foguetes nas redondezas e Setembro entrava pela terra dentro melancólico com o céu carregado de nuvens a ameaçar chuva, e logo se ouvia o som estridente daquela gaita de timbres desconformes por todo o lugar.
O som monótono e discordante do aparelho musical, quebrava o silêncio da povoação que ia procedendo às colheitas do vinho, das abóboras e demais produtos que a terra generosa deu e, como autoritário aviso de regedoria, informava o povo que o consertador de guarda-chuvas acabava de chegar a Sebolido vindo não se sabe de onde mas incrivelmente pontual como tem sido ao longo de muitos e incomputáveis anos.
A carroça era um laboratório ambulante suspensa em duas rodas de antiga bicicleta de pedais e tinha formas de bizarro instrumento multifacetado que adquiria formas diferentes quando o artífice resolvia entrar em acção. Os rodados onde se movimentava toda a estrutura da incomum oficina, mudavam repentinamente de função e posição, transformando-se em rodas livres onde assentava uma correia de transmissão de tela que por sua vez fazia girar um esmeril apto a aguçar tesouras, facas, foucinhas e outros artefactos domésticos e agrícolas, obedecendo ao ritmo das firmes pedaladas do Lourenço.
Pendurados por todo o espalhafatoso mecanismo ambulante, viam-se restos de protectores de chuva já irremediavelmente perdidos para o acto mas que iam fornecendo material num concerto ou noutro que exigia maior intervenção de peças usadas.
Era baixo atarracado de pescoço grosso e mancava de uma perna. A cobrir a carne do corpo, vestia um fato-macaco de ganga azul com fecho de correr que abria a vestimenta até ao umbigo e nos pés calçava umas botas da tropa, sem atacadores e demasiado usadas para conseguirem oferecer alguma protecção e aconchego àquela figura castiça. Na cabeça redonda usava um chapéu preto de oleado de abas caídas que não deixava distinguir-lhe perfeitamente a brutalidade das feições mas adivinha-se pelo pedaço visível, que eram negras e curtidas pelo sol e pela chuva e seguram uma barba onde navalha de barbeiro nunca deve ter entrado. Aparentava não ser ainda velho mas tanto podia ter cinquenta como duzentos anos ou até ter a idade do mundo pois desde sempre, de geração em geração, se ouviu falar por aqui do Lourenço guarda-soleiro.
O povo juntou-se em volta do invulgar estabelecimento ambulante que estacou ao pé da igreja onde iria permanecer durante algumas horas. Alguns traziam nas mãos armações de varetas móveis que os últimos temporais deixaram danificados misturados com tesouras, facas e outras ferramentas que o serralheiro reciclaria a troco de dez mil reis.
A tarde avançava por entre o gemer do aço a sofrer no esmeril e do alicate de pontas que dobrava os arames danificados das varas que sustêm o arcaboiço onde iria assentar o pano de luto protector de chuva. De vez em quando, e já com uma faca aguçada, experimentava o corte nuns tronchos de couve:
— Olha que maravilha, está como nova, até corta papel!
Por entre conversas circunstanciais e para ter sempre a logística sob controlo enquanto trabalhava, deitava os olhos pela multidão assegurando-se de que nenhum fiscal da câmara rondava o estabelecimento. Porém nem tudo corria de feição ao fazedor de maravilhas, as contas, as malditas contas acabam sempre por ter acerto apesar do tempo ter passado e apagado das memórias alguns consertos menos felizes do ano anterior. Pode acontecer, um artista só é verdadeiramente perfeito quando estão reunidas todas as condições necessárias ao bom funcionamento do seu atelier. A oficina ambulante não permite grandes feitos, tem algumas limitações, é um remedeio.
— Ó senhor Lourenço, o ano passado deixou-me este traste numa miséria, nem dois dias durou, grande concerto senhor Lourenço, mais valia ir-me ao bolso e tirar-me o dinheiro!
Era a Lucrécia a mulher do Antunes Perneta a reclamar dos maus ofícios do homem artista.
— Ò mulherzinha, quem aqui andou o ano passado foi o meu avô, eu nem pôs aqui os pés, andei por Cabeçais e Canedo minha santa!Ai foi, e há dois anos!? Foi por acaso o seu pai que me amolou as tesouras da poda que a partir daí só serviram para cortar sabão rosa e marmelada!? Acha que isto é coisa que se faça a uma velha como eu!? O que você precisava era que lhe partisse os restos do guarda-chuva no lombo, no seu, no do seu avô e se calhar também no do seu pai!
— Ó mulherzinha remedeia-se já aqui o mal, disse o guarda-soleiro visivelmente agastado, pegando num guarda-chuva dos tais pendurados na oficina; fica com este, é dos bons, tem varas reforçadas e tudo, até lhe digo mais, era do falecido padre de Souzelo e nunca teve uma avaria.
— Dum morto!? Vossemecê anda tolo homem, esse dê-o à sua mulher se a tiver, aqui a Lucrécia nunca quis nada usado, nem guarda-chuva, nem homem!
O Lourenço calou-se, arrumou a tenda que num ápice se transformou em carroça e pegou na gaita que passou nos lábios cor de vinho tinto e aquele som desconsolado tomou conta de tudo.
Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.