Perdeu três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Todos na flor da idade. Na viçosa juventude em que tudo são sonhos, esperanças e desejos.

Vi-a ontem a subir a rua. Bem asseada como sempre. Cabelo levemente esticado, a enfeitar o pescoço, uma gargantilha que era um fiozinho simples com brilhantes. De vestido de seda às florinhas e malinha preta a tiracolo, maneava-se apressada com a agilidade que lhe permitem as pernas que já calcorrearam caminhos sem fim.

Mal me avistou ao longe, sorriu para mim. Sempre a conheci com o rosto iluminado. Tranquila, como se a paz que existe neste mundo fosse toda dela.

Lembrei-me de um dia, como o de hoje, em que me contou uma pequena parte da história da sua vida. Foi mais o desfiar de um rosário de penas, o desabafo de quem transporta no peito, o peso de todas as amarguras e tristezas da Terra. Os seus olhos, que traziam a aldeia onde nasceu lá dentro, eram dois círios acesos a lutar contra a luz coada do sol do amanhecer, que tentava iluminar-lhe o rosto marcado pelo desgosto, ajardinado com rugas que são as escritas irreparáveis do tempo e da vida.

Falou dos filhos, da valiosa riqueza que já possuiu:

– Ao fim da tarde, todos os dias, os meus filhinhos sobem a costeira e entram pela casa dentro a sorrir. O meu Manel, o pai deles, ao ver-me tão feliz, estremece com o queixo a tremer e com lágrimas nos olhos. Ele julga que enlouqueci, que tenho delírios, que uma parte da minha mente morreu com eles os três. Mas não, sinto-me bem, agarrada à minha fé, na esperança de um dia me juntar a eles.

Agora, os meus olhos são os olhos do coração e é com eles que recordo os dias felizes que juntos vivemos.

Conversamos muito, jantam e vão para as caminhas deles. E quando adormecem, eu vou ao quarto de cada um, aconchegar-lhes as cobertas por causa do frio. De manhã levantam-se e tomamos o pequeno-almoço todos unidos, como acontecia antes de partirem deste mundo.

Maria José suspira, o ar dilata-lhe os pulmões, o peito sobe, o respirar parece um ai vindo de muito fundo. Depois olha o horizonte do rio que lhe roubou um deles, como se hipnotizada pelas saudades que não aparenta, mas que sente no peito a doer em carne viva.

As suas mãos de mãe dolorida desenham no ar morno da serena manhã de Julho, figuras abstratas, sarrabiscos, formas indecifráveis só entendidas por ela.

Talvez representem uma carícia nos cabelos da filha, ou apenas um instante perpétuo que durou um beijo no rosto de um dos outros dois filhos que perdeu. De repente, a dor saiu-lhe do peito, foi refugiar-se-lhe na alma, sítio onde se guardam todos os desgostos, todas as tristezas que são as mágoas indizíveis daquelas mães e pais que perdem filhos e de que mais ninguém é capaz de imaginar a amplitude.

Desperta em segundos da breve ilusão de que, na realidade, nunca viveu tão terrível tragédia. Prefere esquecer, ignorar o sofrimento, sorrir para a vida e arquivar o infortúnio que a transformou numa mulher a quem roubaram a maior de todas as riquezas.

– Eles estão aqui agora, sinto-os – exclamou!

Depois, sorriu com os olhos castanhos, quase feliz na suavidade do alívio melancólico daquela confissão.

Sónia, sua filha, deixou-lhe um neto que ela ajudou a criar. Hoje é um rapaz crescido e bonito que a estima como avó, como se ela fosse sua verdadeira mãe. O amor não conhece parentescos, pode nascer da aridez das diferenças ou da fraterna solidariedade de um povo humilde. Impõe-se para além dos preconceitos e classes sociais, é a afeição mais pura que existe nos humanos e em todos os animais.

– O meu menino é tão meigo para mim! – diz com orgulho e o já recuperado brilho doce no olhar.

– Faz-me lembrar a minha filhinha a sorrir como se fosse um anjo, poucos instantes antes de partir deste mundo.

É meigo e doce como a mãe. Tenho-lhe muito amor! – afirma.

Mas ela sabe que nenhum dos entes queridos vivos que ainda tem e ama, pode substituir um só dos que já perdeu. Eram únicos, insubstituíveis no seu coração de mãe. Não se podem trocar por nenhuma riqueza.

Pressinto um rumor de água nos olhos de Maria José. Umas gotas a soltarem-se, um murmúrio idêntico ao da bica do fontanário do Outeiro a cair dia e noite e a humedecer a velhinha e solitária pia de granito. Semelhante porque a dor também é líquida como a água, como o sangue, como as lágrimas.

-Tenho de ir aos correios, parente. Nós ainda somos familiares. Primos! – reforçou. A sua avozinha Maria Augusta, era uma santa de mulher. Olhava pelos pobres, distribuía alimentos no tempo da guerra, da fome, quando não havia que comer. A sua mãezinha Albertina era como ela, tinha um coração tão grande que não lhe cabia no peito. Você herdou os olhos dela. Eram verdes e azuis como os seus.

A mão direita, de dedos abertos, pousou-lhe no lado do coração e logo a esquerda veio em seu auxílio reforçar a memória, a hereditária gratidão dos simples.

Vi-a seguir apressada pela rua acima. O vestido, de seda às florinhas, baloiçava, sempre que a ventania, que um carro provocava ao passar apressado por ali, a atingia.

Animava-a partilhar com quem se cruzava com ela, o sorriso que lhe iluminava o rosto. A alegria e a coragem que devemos transmitir aos outros que partilham connosco o mesmo espaço de vivência.

Fiquei parado no passeio da beira da estrada, a olhar para um rio tão solidário quanto eu, com a enorme coragem daquela mulher.

Se ele pudesse ter operado um milagre que aliviasse as suas mágoas, decerto que o faria, mas não pode. Nada nem ninguém consegue fazer esquecer semelhantes perdas. Só o sol, que todos os dias nasce a inundar de luz este vale onde corre um rio e transporta na sua eterna caminhada a paz dos inocentes, pode minimizar tão grande sofrimento.

Até breve, parente!

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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