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Milagre em Julho

Milagre em Julho

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DIZEM QUE OS MILAGRES ACABARAM, que por via das injustiças do mundo, as divindades deixaram de se compadecer com os homens e que a terra nunca mais assistirá a mais nenhuma dessas prodigiosas manifestações da presença de algo superior que cuidava dos mais aflitos. O que eu penso é de que os modelos de iluminar as almas se alteraram por ordem de quem superiormente coordena todas as formas de vida e tem como desígnio adaptar e fazer correcções na nossa caminhada para a luz. Tudo muda, tanto no céu como na terra de modo a que o equilíbrio aconteça para o bem de todos. Os milagres são puras manifestações de fé, feitos extraordinários que podem conduzir o homem até Deus, mesmo aqueles que sempre contestaram a sua existência e viveram de costas voltadas para as Suas leis. São estranhos os comportamentos humanos, parece que todos temos uma missão neste mundo e, por mais que se tente alterar o rumo dos acontecimentos, tudo segue imperturbável o seu caminho, tudo tende a harmonizar-se.

O barqueiro contemplava o rio com espírito saudoso. Eram muitas as lembranças que o assaltavam nessa peregrinação pelo passado. Ajeitou a velha boina que lhe cobria os cabelos brancos e permitiu ao pensamento divagar pelas memórias de um tempo que lhe fugiu por entre os dedos de umas mãos esqueléticas.

No alto da colina onde assenta a capela de S. João, observava o horizonte encantador e, por obra do acaso ou sugestionado pela proximidade do templo, pensou em Deus, num ser de quem sempre ouviu falar e foi presença constante nas vidas de muitos mas nunca na dele. Magicou na possibilidade de Ele existir na realidade. Queria uma justificação plausível e imediata para a emoção que o assaltou de repente quando julgava em bom rigor nunca vir a reflectir sobre tão remota e enigmática personagem.

Nunca aprendeu a rezar e, obrigado a fazer pela vida, afastou-se da capela talvez cedo demais para poder compreender a realidade da doutrina cristã apregoada ali todos os dias pelo velho padre Manuel. Depois de ter percorrido uma vida de trabalhos e canseiras, pressentindo que o fim se aproximava a passos largos, sentiu tristeza por não ter essa esperança de fé plantada no peito.

Era um iletrado, não sabia ler nem escrever, nunca saiu deste pedaço de rio onde remava todos os dias, nunca conviveu com pessoas capazes de lhe transmitir conhecimentos e por isso desconhecia que não é absolutamente necessário um curriculum recheado de práticas litúrgicas para se alcançar as bem-aventuranças após a morte. Nem tão-pouco lhe passava pela cabeça que o reino do Céu de que outros lhe falavam, podia estar ao seu alcance. Sabia apenas que não rezou, que não assistiu a missas, que nunca acompanhou procissões e isso era o bastante para se sentir um condenado às terríveis penas do inferno. Se não sabia, bastava-lhes perguntar ao padre que, mandatado para educar o rebanho na rigidez da sua fé, crente e devoto o iria elucidar acerca dos tormentos a que Deus o iria sujeitar, logo que esticasse o pernil. No entanto, longe de se resignar a esse destino que apesar de tudo julgava merecer, deambulou pelas lindezas que a vida lhe deu, pelos momentos em que julgou ter estado muito pertinho dessa Divindade. Sentado nessa pedra centenária, reviveu as cenas que podiam amansar-lhe o coração e a alma.

Lembrou-se de um dia que ficou para sempre gravado no seu coração de ateu e na memória das gentes da aldeia de Rio Mau.
Foi num domingo de Julho que nasceu cedo em traços de calor.
Batiam as nove horas dessa ridente manhã no sino da capela quando a banda musical ensaiava um breve concerto no coreto situado no meio do largo onde dão a volta as procissões.

O padre Manuel perfilava as criancinhas, à frente as raparigas, logo atrás os rapazes.
Elas, vestidas com longos vestidos brancos e grinaldas nos cabelos, faziam lembrar as noivas dos lindíssimos contos de fadas. Eles trajando a rigor, impecáveis, pareciam príncipes de contos antigos.
O céu profundamente azul agasalhava-te e estava a ser testemunha deste belo cortejo. Momento único feito de ternura, de carinho e emoção em que a alma das gentes parecia estalar no marejado dos olhos.

Bateram as e dez horas quando a banda principiou o toque da pequena marcha. De vez enquanto um foguete estoirava no azul do céu e o seu eco entoava pelas encostas dos montes mergulhadas na doçura da manhã. O sino repicava em alegria festiva, era uma melodia com sabor a pureza, o toque por que são chamados os anjos.

Alice passava, era a segunda a contar da frente. Por momentos o barqueiro quedou-se nos rostos de cada um dos pequeninos que alinhavam tão graciosa procissão. Viu azuis de felicidade em cada um daqueles olhares deslumbrados e o brilho da tranquilidade dos seres inocentes e puros. Porém Alice não sorria, o rosto dela tinha-se fechado sobre a terra e era num mundo muito distante que flutuava o seu frágil pensamento. O barqueiro franziu a testa porque notou naqueles olhos lindos uma imensa e profunda ausência.

A procissão entrou na capela de S. João e o padre iniciou a cerimónia:
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…
Pela manhã fora iria ser lindo estar ali.
Eis que chegou o momento mais solene, aquele em que o sacerdote ergueu solenemente a Sagrada hóstia para celebrar a Eucaristia, o instante da ceia que antecedeu a Paixão de Cristo.
— Tomai e comei todos, este é o meu corpo…

Alice fitava sem cessar a imagem da Virgem Santíssima e, naquele rosto meigo de menina bailavam duas lágrimas que lhe rolavam docemente pelas faces e depois iam cair no seu gracioso vestidinho branco. De repente pelas portas grandes da capela abertas de par-em-par, irrompeu uma pomba branca que esvoaçou ao de leve sobre os presentes e depois foi poisar no ombro de Alice. Todos se entreolharam-se espantados…

— Uma pomba branca, uma pomba branca?!.
O padre Manuel surpreendido, hesitou por alguns momentos, depois continuou…
— Tomai e bebei todos este é o meu sangue, derramado por vós e pela multidão dos homens para remissão dos pecados, fazei isto em memória de mim!
A pomba levantou ligeiro voo e foi poisar no ombro da imagem da Virgem Santíssima que do altar olhava para todos com a celestial bondade dos santos.

O barqueiro reparava em Alice e, nos seus olhos verdes da cor do rio, notou um brilho estranho, um brilho de imensa felicidade. Pareceu-lhe então que a mão de alguma divindade estava ali firme a segurar os fios do destino.
Logo que terminou a santa missa todos regressaram às suas casas onde os esperavam as bodas próprias de tão importante ocasião. A pomba mais uma vez levantou voo e saiu da capela enquanto Alice olhava o céu azul onde ela fazia acrobacias de sonho.

À tarde, pelas seis horas após brevíssima cerimónia, saiu a procissão que percorreu as ruas da terra. Quem subia nessa hora as íngremes escadas que conduzem à capela deparava com a pomba branca poisada à beira do sino.

Do alto dessa colina via-se que estavas tranquilo, imponente e belo no teu verde azulado. Alguns barcos passavam colorindo de vida o teu território. A procissão desceu as escadas depois serpenteou em cânticos ao longo da estrada. No céu, a pomba voava e acompanhava o cortejo enquanto Alice não desprendia os olhos daquela aparição. Os sinos repicavam alegres anunciando o fim da festa, o fim da comunhão solene.

No adro da capelinha, Alice, com o seu lenço branco rendilhado, acenava à pomba branca que partia rumo ao por do sol.
Padre Manuel aproximou-se e abraçou a criança ao mesmo tempo que lhe perguntava:
— Tanta felicidade Alice sinto-te tão contente?!
A menina, sem tirar os olhos do poente, respondeu:
— Senhor Padre, quando erguias a hóstia do Senhor, eu rezei muito e pedi à nossa Virgem Mãe:
— Minha querida Mãe do Céu, pede ao teu filho Jesus que deixe a minha mãezinha, que ele tem no seu reino, vir aqui nem que seja um só momento, ver como estou linda neste vestido branco da minha comunhão solene que é decerto igual ao que ela usa aí nesse lugar onde está. Vês Mãe Santíssima, estão aqui todos os pais e todas as mães dos meus companheiros e companheiras só a minha é que não!

— Viu Senhor padre aquela pomba branca!? Era a minha mãezinha que Jesus mandou do Céu para estar comigo neste dia. Sou tão feliz Senhor padre!
O sacerdote apertou a criança contra o peito, lágrimas gordas brilharam no rosto daquele homem. Ajoelhou ali mesmo, ergueu os olhos ao firmamento e comovido disse:
— Obrigado Senhor!

O barqueiro levantou mais uma vez a boina e coçou na cabeça. Um sorriso enigmático desenhou-se-lhe nos olhos, decerto esta recordação acabava de provar-lhe que afinal sabia rezar que, quem sabe se na sua hora final, em que sozinho em frente da cruz do seu rosário sem nada nem ninguém que lhe possa valer, também haja uma pomba branca para ele, enviada do céu pela infinita misericórdia daquele Deus que sempre ignorou. Provavelmente nenhum Deus o irá julgar pelo rol dos seus pecados pois que delitos pode ter um homem que trabalhou nos barcos transportadores de antracite toda a sua vida e iria morrer com os pulmões esmagados pelo pó do carvão?

Os milagres acontecem todos os dias, meu amigo mas quem não é capaz de se compreender a si próprio e aos outros como poderá compreender os enigmáticos desígnios de um Deus?
Neste momento és um espelho mágico que reflecte o lindíssimo rosto da mãe Natureza. Estás como eu emocionado, aconchegas-te um pouco mais no leito e docemente preparas-te para dormir. Dorme rio dos meus sonhos que mesmo sendo ainda pequenino, velarei por ti.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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