O HOSPITAL é uma casa demasiado grande para se poder controlar tudo o que se passa no seu interior. Devia ser uma hospedaria como o nome indica, já o foi em tempos remotos, mas depressa se transformou numa casa de saúde. Tem vida própria como as pessoas, aglutina dentro das suas paredes, quase todos os interesses do mundo, ramificações espalhadas por toda a sua área, sectores essenciais ao seu perfeito funcionamento, engrenagens que se assemelham a órgãos de um corpo humano e são vitais na manutenção da vida equilibrada da estrutura, definem a complexa grandeza da casa. Quem vem para um sítio destes, já sabe que ao fim de um período de tempo relativo, a correr bem, poderá sair pelo seu próprio pé ou se correr mal, ir dali para fora metido numa caixa de madeira. São duas as hipóteses, tudo depende da doença que trazemos connosco à entrada ou da maior ou menos amálgama de ossos partidos por todo o esqueleto.

Muitas vezes recorremos a ele sem estarmos doentes, deixamo-nos enganar pela mente que habilidosamente provoca reacções semelhantes a sintomas de grave enfermidade, apenas para nos alertar para condutas de vida que a estão a afectar. O intelecto coordena tudo, é impossível viver desligado dele e dos métodos rigorosos que utiliza em defesa do canastro onde habita. Podemos enganar um batalhão inteiro de pessoas, mas nunca conseguiremos iludi-la por mais que isso nos doa e cause arrelias. Muitas vezes desejamos ser nós próprios, cometer toda a espécie de disparates ou mesmo obras de misericórdia sem ter aquela coisa dentro da cabeça a tilintar constantemente mesmo durante o período de sono.

A mente não tem nada a ver com o corpo onde habita, é autónoma, assemelha-se a um univalve que vive dentro de um búzio, mas não tem qualquer dependência do mesmo, e pode em qualquer altura abandona a couraça, seguindo o seu destino livre e independente. É incalculável a sua potência em Megabites e imprevisível quanto baste, pode transportar-nos ao céu ou às profundezas do inferno num espaço de microssegundos. O nosso corpo é a carcaça da mente e, como qualquer inquilino que se preze, faz tudo para proteger e manter inviolável a moradia onde habita.

O hospital desanima com as enfermidades e padecimentos das criaturas humanas. Não é fácil conviver com tanto sofrimento dentro de nós mesmos e há pessoas que vêm depositar os seus idosos, cuja única doença de que padecem é velhice, dentro dele, só para não terem de os aturar nas suas casas. Tem dias em que o hospital fica completamente desorientado e nem se pode falar com ele.

Quem não compreende um hospital, escusa de se esforçar para compreender o mundo pois dificilmente perceberá a realidade que o cerca e em que vive. Quando acontecem acidentes graves e a gritaria das ambulâncias ensurdece os doentes e os não doentes, encolhe-se todo a um canto a tiritar de pânico.

As pessoas tratam-no mal, é frequente dizerem que detestam entrar ali, que foram mal recebidos, que os deixaram morrer lá dentro, que se não saíssem de lá a tempo e tivessem ido a um bruxo qualquer, o mais certo era já estarem a fazer tijolos. Que os médicos falharam no diagnóstico e que as enfermeiras eram mal-encaradas, isto e outras barbaridades que o aborrecem e de que maneira. Se eu fosse hospital também não ia gostar de ser tratado assim e julgo que ninguém, em bom juízo, aceitaria tanta falta de gratidão da parte de pessoas que constantemente acorrem aos seus serviços, muitas vezes sem necessidade nenhuma, mas só por que se constiparam, ficaram de diarreia, lhes dói uma perna ou um braço, ou sentem uma ligeira dor no peito e pensam logo que o coração rebentou e, se não forem rapidamente examinados, vão desta para melhor num instante. Nestes e em outros distintos casos, há que correr às urgências do hospital, entulhar aquilo tudo, ocupar quem lá presta cuidados com ligeiros distúrbios provocados pela mente, prejudicando os a quem o organismo faliu de verdade.

É por estas e por outras que o hospital se aborrece com as pessoas, fica furioso e quando os apanha desprevenidos lá dentro, enfia-lhes uma pneumonia virosa no corpo só para eles aprenderem que não se brinca com a saúde e que devem disciplinar a mente de modo a que ela não ande por ai a fazer aquilo que bem lhe apetece.

Uns sujeitos chegaram uma vez ao hospital a torcerem-se com dores por todo o corpo e com convulsões de tal ordem que foi preciso amarra-los às macas. Parece que lhes passou por cima uma máquina de terraplanagem numa obra e isso pode deixar qualquer um em pantanas. Imagine-se o sofrimento que o esmagamento de metade do corpo causa numa criatura, as dores chegam a ser insuportáveis e era por isso que eles berravam e pediam que os matassem por que já não aguentavam mais semelhante tormento. O hospital ouvia aquela gritaria toda, estremecia de pavor só de imaginar que podia ser ele a ter ficado como um ovo estrelado debaixo de uma máquina ou ser vítima de demolição para dar lugar a uma sede de instituição bancária.

Entretanto um corpulento médico de serviço nas urgências, decidiu responder aos apelos dos traumatizados que não paravam de pedir a eutanásia. Com voz de trovão, usando da autoridade de quem tem poder de decidir entre a vida e a morte, exclamou:

– Calem-se todos. Ficam a saber que aqui não se pode morrer hoje!

Há médicos assim, são poucos, mas são alguns, teimosos, obstinados, irredutíveis nas suas posições e, quando assumem a verdadeira missão de tratar, um gajo bem pode espernear-se todo que não consegue a assinatura no passaporte para a outra vida, nem baixa por mais trinta dias.

O hospital conhece os doutores todos, dá-lhes guarida, apercebe-se das suas ansiedades e é raro o dia em que não desenvolva com eles grandes parlatórios. Os médicos queixam-se dele, das suas deficientes estruturas internas, das janelas, das portas, das paredes e até da falta de ar condicionado nas retretes. Por sua vez, o hospital chama-lhes nomes, diz-lhes que são incompetentes, negligentes, que deixam as pessoas morrer por negligência e que só pensam em servir nos hospitais privados onde os euros escorrem pelas paredes abaixo. É claro que ninguém leva estas discussões a sério, em tempos como são os actuais, toda a gente se queixa de tudo e de todos muitas vezes sem ter razão nenhuma e é por causa da crise pandémica, fruto da nossa irresponsabilidade enquanto ocupadores do planeta que não se pode morrer hoje.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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