AS COISAS MUDAM, tudo se altera neste globo de dois movimentos constantes, os homens e os rios vão envelhecendo, o que parecia ser eterno, acaba por se revelar tão efémero como um beijo. Pessoas como eu, deixam muitas coisas por fazer por que é impossível no curto espaço de uma vida, realizar todos os sonhos que sonhamos. São muitos os que observam simplesmente o passar do tempo alheios a tudo o que palpita de emoções para lá do espaço onde circulam. Por alguma razão isso acontece, nem todos têm a percepção da realidade que os cerca, e da necessidade urgente de abraçarem os seus semelhantes. Administram os dias e as horas de forma matemática como se o tempo de partilhar nunca existisse e fosse perpétua a suas passagens pela terra. Quando a morte vem, pouco ou nada haverá para contar aos que ficam, desaparecem sós, morrem sem afectos e só as heranças materiais ficarão a lembrá-los enquanto durarem os tostões que amealharam e as propriedades não forem transformadas em patacas.
Tu sabes, conheces inúmeras narrativas desse género que podias contar-me. Calas-te, preferes guardar só para ti as muitas vezes em que os homens te desiludiram. És um rio e os rios não têm as mesmas preocupações dos humanos por que são eternos. Nesta história como em quase todas as que conheço e vou contando, tu és a personagem mais importante, o palco onde se movimentam todos os actores e actrizes na representação mais sublime alguma vez levada à cena.
Anda cá Beatriz, senta-te aqui deste lado e tu Matilde, ficas à minha direita, uma em cada perna, sossegadas que este é um daqueles momentos que haveis de recordar pela vida fora. O Afonso e a Maria são ainda dois bebés surpreendidos pela luz de um novo mundo e por isso ficarão a olhar-nos sem compreender a grandeza destes instantes. O seu tempo de beber do cálice do conhecimento há-de chegar sem pressa e, nessa altura, se eu ainda existir, iluminar-lhes-ei a mente como o tenho feito convosco. Hoje vou-vos contar a história do barqueiro que no seu barco azul remava, remava pelo rio abaixo todos os dias e, uma vez:
— Avô, conta aquela do Cotiça, quando ele apareceu com o pau dele e começou a bater.
— Hoje não Matilde, hoje vai ser a história do barqueiro que remava, remava pelo rio abaixo todos os dias.
— Não avô conta aquela do gigante que bebeu a água toda do mar!
— Não Beatriz, hoje vai ser a história do barqueiro que remava, remava todos os dias pelo rio abaixo.
As duas crianças vencidas, anuíram com um sim verbal e um abanar afirmativo de cabeça e, os seus olhos pequeninos perscrutavam já o cenário maravilhoso do rio onde tudo aconteceu. Porém, com a vivacidade própria de quem procura avidamente respostas para as intensas interrogações que o mundo provoca nos seres em processo inicial de vida, uma delas interrompeu-o:
— O barqueiro do rio doiro avô, o que levava um pau escondido no barco para bater no Cotiça que rouba as galinhas, disse apreensiva a Matilde.
— Eu também tenho um pau escondido no meu barco — disse a Beatriz.
— Tens um barco?
— Tenho uma canoa pequenina e às vezes vou a remar, a remar pelo rio abaixo.
— Eu também tenho um barco muito grande avô e levo lá um pau escondido para dar umas cacetadas na Alface Pintada.
Enquanto falavam os braços pequeninos iam imitando a arte de remar em gestos tão ritmados e perfeitos que parecia que tinham nascido já com a faina do rio entranhada na alma. O homem velho deixou que as duas rapariguinhas fizessem a introdução do conto, permitiu que a imaculada imaginação delas colorisse mais uma vez de fantasia as narrativas com que de vez em quando lhes ocupava o espírito. Após breves minutos, serenaram os anjinhos e, como se o livro grande da sua vida se abrisse em determinada página, o avô continuou:
— Era uma vez um barqueiro que tinha um barco todo azul e remava pelo rio abaixo todos os dias. Era já velho, na cara enrugada trazia um mapa que parecia mostrar todos os recantos do rio Douro. Dizem que conhecia todas as manhas do rio e que gostava tanto dele que não havia dia nenhum sem que ele não navegasse pelas suas águas com o seu barco azul. A água rasgada pela proa do barquinho, fazia um murmurejar de ondas a bater nos rochedos das margens, parecia uma canção de embalar.
Quando ele passava com o seu barco, todos os peixinhos do rio vinham a acompanhá-lo desde lá de cima de Midões até ao areal de Melres onde ele parava de remar e deixava-se ir a boiar pelo rio abaixo.
Uma vez, levantou-se um temporal muito grande por cima de Rio Mau, as nuvens eram tão negras que o sol deixou de iluminar a terra. Ficou escuro como a noite, nada se conseguia ver à distância de uns metros e começou a chover tão forte que até os cães bebiam a água da chuva de pé. O ciclone que apareceu entretanto, fazia as árvores abanar e as pontas mais altas balanceavam-se quase até tocarem no chão.
O barco azul vinha no meio do rio que parecia uma mar embravecido com ondas do tamanho de uma casa, o barqueiro lutava desesperadamente com a fúria da tempestade e, de repente, um forte repelão de vento fez os remos caírem na água e o barco ficou completamente desgovernado. Tudo parecia perdido para o barqueiro, sem remos, nunca conseguiria chegar a terra a salvo e o mais certo seria afundar-se com o seu barco azul nas profundezas do rio. Então do alto do céu que se abriu como por magia, saiu uma luz muito branca que iluminou todo o rio e toda a terra e, como respondendo a uma ordem divina, apareceram milhares de peixinhos que com as pequeninas cabeças, empurraram o barco azul até à margem.
O barqueiro tirou a boina preta, descobriu-se e dizem que pela primeira vez na sua vida se ajoelhou no barco a rezar.
Ainda hoje, quando estou sentado a olhar para a água, continuou o avô, parece-me ver esse barco azul com um barqueiro a remar, a remar por esse rio abaixo.
Fez-se silêncio que durou o tempo que pode levar uma alma a chegar ao céu ou fazer a as mentes deslumbradas destas crianças, voltar a experimentar a realidade.
— Olha acolá para baixo para o rio avô, não vês o barco azul a passar — perguntou a Matilde.
— Também estou a vê-lo avô, é cor-de-rosa — proferiu a Beatriz.
O velho barqueiro olhou para ti e constatou que não havia barco nenhum a sulcar as tuas águas mas sorriu afirmativamente por ter reconhecido mais uma vez que é possível ter um barco, um rio e navegar nele sempre que reinventamos o tempo feliz e inocente da nossa meninice.
Todos temos um rio a correr dentro de nós mas são muito poucos a deixá-lo sair das margens que o oprimem.
Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.