ENQUANTO os lobos uivam famintos na serra das Banjas e os ventos de Fevereiro sacodem inclementes as árvores da margem do rio, o Arnaldo da Picota atraca com perícia de Mestre, o barco Rabão no cais de Eira de Melo.

Neste agreste e molhado entardecer, já outras embarcações regressaram da faina de descarregar no Porto, no cais da Ribeira, as lenhas de madeira de peso, achas e rachões, o combustível requerido por diversas padarias que a cidade sustenta.

O Olho Verde, o Moca e o Brinca passavam já as sirgas nas argolas de ferro cravadas no granito do paredão, assegurando assim, mais reforço à precária estabilidade da grande embarcação sacudida pelo traiçoeiro vento de Leste. Regressaram da viagem do Porto e algumas mercadorias que carregaram ali, repousam ainda nos taburnos, porões abertos e visíveis do barco, aguardando o início da descarga. São sacos de arroz, de açúcar, latas cheias de carboneto e outros produtos que não se produzem aqui, misturados com fardos de bacalhau seco com destino à loja do Martins Alves. Mais abaixo, no canto de jusante, outra embarcação balouça ao sabor das ondas, enquanto o Albino Louseiro vergado sobre a escudela que empunha, vai escoando a água acumulada no fundo do barco. Os de Pédemoura vão dormir aqui, pois, pela madrugada, irão carregar novamente a embarcação com mercadorias destinadas à cidade Invicta.

Hoje são 16, é dia de feira em Melres e é grande a azáfama no talho do Antonino marchante. Do improvisado e notável matadouro da casa em frente, saem postas de carne de boi que, ainda quente, vai ser retalhada em bifes e postas para assar na brasa ou no forno. As melhores partes, filé minhon, juntos com as costeletas e os lombos, vão para o padre da Casa Maior, cuja criada já aguarda sentada no banco de madeira, tricotando uma peça de roupa, a um canto do açougue. De seguida, o Antonino despedaça a carne de estufar e uma posta do vazio vai inteirinha para o senhor da quinta da Coucela, homem de teres e haveres, mas que mesmo sendo abastado, não chega aos calcanhares dos Ferreiras da Casa Grande, que são os senhores da freguesia e também se abastecem neste talho.

A carne sobrante deste despacho crepuscular arrefece prostrada em cima de toalhas de linho e amanhã será vendida às famílias mais humildes e aos pedacinhos de cem gramas, nos talhos de Melres e de Rio Mau, ambos propriedade do Antonino.

António Brinca rompeu pelas ombreiras da porta do estabelecimento a roer um naco de broa de milho e, ao deparar com semelhantes postas de chicha ainda fresca em cima do balcão, arregalou os olhos como se tivesse visto um fantasma. A tanta fartura de carne diante das vistas famintas que cobiçavam tudo, dizem que até as lenhas de peso depositadas no cais e que iam desaparecendo sem que ninguém soubesse quem as subtraía e o seu destino, despertou nele um ímpeto tal que o havia de conduzir à morte. Levou no bolso um nico de chicha meio gorda para o caldo e no coração lavrada a sentença pelo pecado que os seus olhos namoraram.

Já serenou a povoação de Melres, no lugar de Santiago não se avistam luzes a tremelear no escuro, na Lomba do outro lado do rio, a noite já agasalhou de silêncio todo o povoado e no rio, as fainas fluviais amainaram. Não tarda que os barqueiros adormeçam cansados, deitados nas tábuas das Bateiras. Dos montes, lá nos altos entre Vilarinho e Branzelo, zona onde o mato é denso e ninguém se atreve a percorrer os caminhos de noite, estalam os uivos das feras nas Quebradas e o medo aparece a perturbar a alma do povo. Reforçam-se as trancas e recolhe-se o gado, porque os lobos com fome não poupam nada nem ninguém.

Os ecos de tiros ouviram-se por todo o lugar e até na outra banda do rio. Na serenidade da noite, acenderam-se luzes difusas na alta madrugada invernosa e indagaram céleres as causas de semelhante profanação do descanso nocturno. Mas nada, tudo serenou, nem o mais leve ruído e só silêncio a noite devolveu aos habitantes do sítio. Silêncio profundo semelhante ao de túmulo em cemitério abandonado.

A manhã, a risonha manhã que acaba sempre por dar lugar às trevas e renovar esperanças, acordou o povoado e revelou apenas um pouquinho da cobarde e inédita tragédia: O Brinca foi baleado por três tiros à queima-roupa, ali no cais de Eira de Melo, porto onde atracam barcos e se transacionam mercadorias. Tombou morto nas profundezas do rio e o seu corpo nunca mais apareceu à superfície, apesar das buscas intensivas do povo que nem sequer sabe quem foi que o matou, apesar da Guarda Republicana de Gondomar passar a pente fino o lugar e aqui permanecer durante dois anos.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro InteiroDouro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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